Diário de um recolhimento 6
31/03/2020
Hoje é o meu dia de trabalho nos hospitais. O sol continua escondido e agora chora. Bem de certo - como diz a Bet - não lhe atenderam as queixas de ontem. Consultas presenciais, videoconsultas e teleconsultas. Tentar dar a volta a isto. Um homem que sobreviveu ao seu tractor em cima, outro que quase morreu com uma bicicleta, alea jacta est. Ainda é cedo e vai piorar, mas pode ser que não fique tão mau como em Espanha.
Triste fado, ouço a Amália no carro “Estranha Forma de Vida”. Nem mais, como o livro do Vila Matas, aliás inspirado no fado escrito pela própria Diva. Deixo aqui espaço para o livro ao fim da tarde: “À minha maneira quis comportar-me como se fosse o Deus antigo dos cristãos. À minha maneira quis estar em todos os lugares e espiar tudo, espiar toda a gente. Estranha forma de vida. Tornei-me espião de mim próprio.” Como todos nós, imagino por esta altura.
Continuo no fado em viagem para o hospital, Camané, Gisela João, Ana Moura e a revelação (para mim) Sara Correia com uma interpretação notável de “Fado Português”. Esta música em que bastam dois acordes para estar em Portugal, este fado que é a nossa milonga, o nosso tango das tabernas não dançável. Lembro de ter lido Borges falar sobre isto, ele com a sua costela portuguesa.
Deixo aqui espaço para o livro: “Não sabemos se o universo é um espécime de literatura fantástica ou de realismo.” Quem o pode dizer nos dias de hoje, que pode ser peremptório?
As ruas desertas como num poema, um cenário pós apocalíptico que pode muito bem ser pré-apocaliptico, embora eu não acredite muito nisso. H. G. Wells ía gostar, Al Berto também, Stephen King deve estar a ter milhões de ideias neste momento. A mim nem um ampère de lâmpada, nem um fruto na cabeça, nem um banho de imersão.
Se um extra-terrestre nos visitasse curvar-se-ía perante tal civilização. Isto antes de morrer infectado.
Ninguém toca nas maçanetas das portas. É talvez, neste momento, o lugar mais seguro para por as mãos.
Segundo Darwin vamos desenvolver dedos nos cotovelos. Vejo autênticos bailados em frente a portas fechadas, dança contemporânea, personagens com asas de frango em vez de membros. Luvas que vão à boca, desinfecção de narinas com cotonetes do inferno, olhares desconfiados “deves ter de certeza!”, “tu é que deves!”, “não! tu!”, “tu!”, “tu, tu, tu!”, “tu infinitos”. Assim, no plural de infinito, crianças adultas com medo.
Outra vez o Al Berto. Lá terá que ser “O Medo”:
“ Sou o último habitante do lado mitológico das cidades”
“A escrita á a minha primeira morada de silêncio”
“Quando aqui não estás
O que nos rodeou põe-se a morrer”
“Procurei dentro de ti o repercutido som do mar
A voz exacta das plantas e um naufrágio
O deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
O rumor latejaste dos sonhos, as cores de um astro explodindo
O cume nevado de cada montanha
Difíceis rios, os dias”
“Difíceis rios, os dias” Assim. Como se fosse fácil escrever isto e permanecer tranquilo à beira da estrada. Como se a alegria que se procura não se encontre enterrada em muita miséria e isso fazer de todos nós espeleólogos frustrados.
O Agostinho manda-me uma frase do inventor de línguas Mia Couto: “O mais importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora.” Depois citou-me Borges, vejam bem!
Mas não volto ao labiríntico Borges, regresso à estante e trago um Mia Couto:
“História de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens.”
E para acabar em beleza, porque é disso que se trata:
“Só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo de novo e nada de mundo.”
Até amanhã.
Amália:
Camané:
Gisela João:
Ana Moura:
Sara Correia: