Diário de um recolhimento 10
04/04/2020
Acordo com uma mensagem e uma lembrança. A mensagem fala da alegria estupidamente infantil que os amigos nos trazem e é relativa ao diário de ontem. Começo bem. Obrigado Anabela. A segunda é uma fotografia do desconcertante e brilhante (penso mesmo não existirem adjectivos que descrevam este homem) Agostinho da Silva que a Marisa Sousa colocou no Instagram com esta frase por baixo “O mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas”. Vou a correr à estante, sei exactamente onde está, só trouxe um, mas tenho pelo menos mais cinco livros dele em casa dos meus pais.
“Vida Conversável” deste grande viajante, fundador de universidades e pensador livre. “Muita gente sente-se oprimida, sente-se excluída de uma vida verdadeira porque tem de ser só isto ou aquilo.” Como eu compreendo. Para mais somos criticados por alguns que só veem em frente e não o que os rodeia por todos os lados. Passeio muitas vezes pelos caminhos do quotidiano e tento olhar para coisas de forma diferente: telhados, formatos de portas, sapatos que passeiam, jeito de caminhar. Agora que estamos confinados, talvez ir à janela e olhar de forma diferente para tudo o que estiver para lá do quadro.
No seu livro “O Silêncio na Era do Ruído”, Erling Kagge diz:”queríamos ver Nova Iorque como ninguém antes a vira. De dentro para fora e do alto das pontes.” É como tentar ver de outros ângulos o que já conhecemos bem. Quando chove olhar para cima, é um dos meus lemas. Quando abandonamos um local, olhar para trás. Tento transmiti-los aos meus filhos. Por falar neles, vejo a Rita a usar um livro do Calvin & Hobbes. Abro-o à sorte e apanho-os a dançar - dançam muito - numa tira de domingo, das coloridas. O último quadradinho é a mãe a acordar com o barulho: “Ele está a pôr música clássica a 78 rotações?”
Como não podemos sair, a viagem está sempre presente. Visito as últimas viagens, os livros que as usam como motivo ou os livros que as contam, e depois há também as viagens interiores, aquelas que não nos levam a lado nenhum e a todo o lado ao mesmo tempo. O ano passado em África a minha última frase foi: “Adorei tudo, mas vim pelas acácias.” E de facto as acácias eram África para mim, como foi África ter lá estado com a mulher que amo e termos sentido o rugido do leão dentro de nós à noite.
A Bet do outro lado da mesa, sempre a trabalhar, olha para mim e diz: “Estás com sabor a sábado de manhã”. E diz ela que não entende de poesia.
Visito também o livro de viagens que provavelmente deu origem a todos os livros de viagens, apesar da Bíblia também o ser, leio a Odisseia com tradução do Frederico Lourenço: “É difícil para um mortal dominar um deus.” Isso quer dizer que não é impossível? Boa mensagem nos dias de hoje.
Também um dos que deram origem aos livros de viagens de agora: “O Mundo - Modo de Usar” do Nicolas Bouvier: “Nunca somos senhores do tempo perdido.” A não ser Proust, por isso escrevo, para não esquecer. E ainda leio: “O velho M..., que aperfeiçoou até ao limite a arte de viver em paz.” E fez-me lembrar outra vez Agostinho da Silva.
266 mortos em Portugal, 14681 mortos em Itália, 7403 mortos nos Estados Unidos. Também morrem pessoas mais jovens. Desenganem-se os imbecis imortais! Nunca leram Homero! Não sabem que ninguém é invulnerável? Nem Aquiles!
A fazer o jantar ouço os Xutos (os antigos, não os recentes), os que ía ver a pavilhões vazios com os meus grandes amigos João Nuno e Zé Miguel, os que nos deixavam à espera e que depois encontrava ao meu lado nos urinóis “Ouve lá, Kalu, não deviam estar no palco?” “Já experimentaste tocar com a bexiga cheia?” Nem cheia nem vazia porque eu música só ouvir. E ouço mesmo “Longa se Torna à Espera” - nem de propósito. E quando acabar: “Terei, terei mais uma vez forças/Para enfrentar tudo de novo/Como a galinha e o ovo/Num repetir de desgraças”. Desculpa lá Kalu, mas é uma boa história. Saravá Zé Pedro!
Xutos & Pontapés: