Diário de um recolhimento 19
13/04/2020
Maria Bethânia, não a minha, a irmã do Caetano, a declamar um poema que todos pensavam ser algo actual pela temática, mas no fim vai-se a ver e é Álvaro de Campos com o seu “Ultimatum” - reproduzido no fim do texto. “Mandem tudo isso para casa/descascar batatas simbólicas”. “E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à/porta da Insuficiência da Época!” Actual, não? Anda aí alguém com as orelhas quentes? Abro o meu Álvaro de Campos e calho na Tabacaria. É claro que não é ocasional, o livro está marcado pelas vezes que o li: “Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Tem dias, tem dias. Hoje por exemplo é dia de não sou nada e sem sonhos. No fundo temos todos pontos de contacto, mesmo o mais vil dos homens pode gostar do seu cão - veja-se Hitler - e o mais dócil dos homens pode empunhar o punhal e assassinar, basta colocá-lo em certo contexto. É claro que o que nos constrói não é o que somos a cada momento, mas a soma das partes, somos uma espécie de Teorema de Pitágoras: em qualquer triangulação humana, a soma do quadrado das tristezas é igual ao quadrado do tamanho das alegrias. Já lá vão uns anos, posso estar enganado. Dentro do Campos, textos meus, a maior parte lamentável, um exemplo: “Espero a próxima tempestade como se de azul tivesse a vida governada.” Predestinação ou absinto? Nunca gostei de absinto, mas nunca se sabe. Encontrei também uma lista de proibições célebres que não sei de onde tirei (não me parece ter imaginação para as inventar). Proibido beliscar a cantora, dar de comer ao hipopótamo, experimentar os preservativos, cuspir aos llamas!
Ao lado do Campos está o Caeiro e o Bernardo. Vamos lá ver: um panfleto da Onda Poética com o Pedro Lamares (sem dúvida o que dizia melhor),o Nunes Carneiro e outros. Até eu lia em público. Agora não. Típico Caeiro “Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.” Talvez um bom conselho para estes dias. E “Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.” A ver se aprendo, o pior é a chuva cá dentro. Já o Bernardo Soares “A liberdade é a possibilidade do isolamento.” E novamente loucuras minhas “não fujas de ti/fica/não escrevas mais esta noite.”
Ouço Bethânia e Gal a cantarem “Sonho Meu” e o tempo pára, não é preciso muito mais para ter um momento de felicidade pura. Esse é o poder dos artistas, o poder que nenhum tecnocrata consegue, nenhum carro de um milhão de euros, porque isto posso repetir quando quero, o carro não. Depois “Reconvexo” com Sahara e Roma e nós a sonharmos com coisas impossíveis. É esse o poder. É um poder lindo, bate um Ferrari, bate um relógio de ouro. É também esse o poder da poesia. Temos de comer e beber, temos de ter abrigo, roupa, saúde. Daí para a frente temos esta gente.
Hoje, dia treze de abril, 535 mortos em Portugal, uma potencial vacina em Israel, beijaram a cruz em Barcelos - de notar que foi como se estivessem a fumar um charro às escondidas -: o poder do que nos consola, o poder do invisível, do que o que está fora do nosso alcance. Para mim é a poesia, a música, a pintura, a arte a que não chego, mas à qual me submeto, a minha religião. O bispo do Porto falou em covírus, não deixa de estar certo: é uma súmula, podia ser coronavid, que interessa? O que interessa é manter a coragem e a determinação. O que interessa é sorrir face ao precipício.
Nos EUA mais de 22000 mortes. Têm um drive-in religioso, não me parece mal, acho até boa ideia, a ser transferida para outros eventos. Estou disposto a drive-in para ver concertos, para ouvir poesia, para ir ao cinema. Uma ideia: reabilitar os drive-in para vários eventos. De carro com a nossa namorada, o que pode existir de melhor?
Fui ver o meu diário há um ano, Notre Dame pega fogo amanhã. Já passou um ano e um século desde então. Onde chegámos? Para onde vamos? Hoje estou com Bethânia e Pessoa.
Para equilibrar, pois Pessoa é muitos, vou buscar João Cabral de Melo Neto, comprado no Brasil. Este país fica em nós, não sei explicar como, como África talvez, como o rio da minha aldeia, a alegria. Sim. A alegria que nos falta. Abro e dentro um bilhete para Maria Bethânia no Coliseu em 2017. Já sei... Mas é mesmo assim, acreditem ou não. A magia existe. Obrigado Bethânia: “Espinho não machuca flor... em África os deuses dançam...proibiram os tambores...com os pés sobre a superfície da terra...abrir-se-iam brechas no mundo inteiro. E João Cabral “e possa enfim...o sim comer o não.” Vou descascar batatas.
ULTIMATUM
Mandato de despejo aos mandarins do mundo
Fora tu,
Reles snobe plebeu
E fora tu, imperialista das sucatas
Arranjista da intelectualidade inesperada
Charlatão da sinceridade
E tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro
Ultimatum a todos eles
E a todos que sejam como eles
Todos!
Monte de tijolos com pretensões a casa
Inútil luxo, megalomania triunfante.
Cristianismo para uso de prestidigitadores!
E tu, Portugal-centavos, a apodrecer República, extrema-unção- -enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
Ultimatum a vós que confundis tudo, o humano com o popular
Vós que confundis tudo, que, quando não pensais nada, dizeis sempre outra coisa! Chocalhos, incompletos, maravalhas, passai!
Vós, anarquistas deveras sinceros
Socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores
Para quererem deixar de trabalhar
Sim, todos vós que representais o mundo
Homens altos gigantes de formigueiro
Passai por baixo do meu desprezo
Passai aristocratas de tanga de ouro
Passai Frouxos
Passai radicais do pouco
Quem acredita neles?
Mandem tudo isso para casa
Descascar batatas simbólicas
E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da Insuficiência da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra!
Tudo daqui para fora! Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!
Se não querem sair, fiquem e lavem-se!
Época vil dos secundários, dos aproximados, dos lacaios com aspirações de lacaios a reis-lacaios!
Fechem-me tudo isso à chave
E deitem a chave fora
Sufoco de ter só isso à minha volta
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas!
Abram mais janelas!
Do que todas as janelas que há no mundo!
Nenhuma ideia grande
Nenhuma corrente política que soe a uma ideia grão!
E o mundo quer a inteligência nova, sensibilidade nova.
O mundo tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!
A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada!
O que aí está a apodrecer a vida, quando muito é estrume para o futuro!
O que aí está não pode durar porque não é nada.
Eu da raça dos navegadores
Afirmo que não pode durar!
Eu da raça dos descobridores
Desprezo o que seja menos que descobrir um novo mundo!
Proclamo isto bem alto
E bem no auge, na barra do Tejo de costas para a Europa
Braços erguidos
Fitando o Atlântico
E saudando abstratamente o infinito.
Álvaro de Campos