Diário de um recolhimento 29
23/04/2020
De manhã fui operar vestido de escafandro lunar, ou marinho que não seria pior, ao menos tem vida. Ao almoço assisti à aula de Física e Química da Rita na RTP Memória, o que foi muito interessante para relembrar conhecimentos que aqui estão dentro mas enterrados em toneladas de outras memórias, de outros pensamentos, em gavetas que não são abertas há muitos anos, cheias de pó, cotão e ferrugem. Descobri que o meu ponto de ebulição é menor do que o da prata ou do ouro, quase igual ao da água, mas ainda mais baixo, principalmente agora. Mas do sólido ao vapor é sublimação - que palavra bonita.
Do hospital a casa são dez minutos, nem isso, de carro. Ouço na Smooth FM o “Jazz Fora de Horas” com o Gonçalo Câmara que apresenta uma actuação de um dos maiores baixistas (não de jogo baixo, entenda-se) de sempre: Jaco Pastorius. Com uma história de vida fulgurante e morte estúpida - não as são todas? Não! Há vários tipos de morte e nem todas recomendáveis - aos 35 anos. Deixou de ser baterista após a fractura de um punho. Se tivesse tido um bom ortopedista não existiria um dos maiores baixos de sempre (maiores baixos?).
Gravou com Pat Metheny e Joni Mitchell, entre outros. Tocava com um Fender Jazz Bass 62 que foi roubado e recentemente recuperado (???). Morreu após um traumatismo craniano numa rixa. Entre outras proezas, andou nu na sua mota a alta velocidade em Tóquio. Cheguei a casa e ouvi entre outras, a versão ao vivo de “The Chicken” com Soul Intro. Recomendo.
Hoje é dia mundial do livro e ainda não falei de nenhum. O Agostinho envia-me a versão digital de “Os trabalhos e as noites” da Alejandra Pizarnik de 1965. Também morreu aos 36 anos.
“Tu escolhes o lugar da ferida/onde falamos o nosso silêncio./Tu fazes da minha vida/esta cerimónia demasiado pura.” É este o meu bálsamo. É isto que me acalma nestes dias em que fico irritado por tudo e por nada, como Conrad, descrito por Marías, segundo o qual o autor de “O Coração das Trevas”, tinha ataques de gota só por saber que um amigo não estava bem e quando deixava cair a caneta ao chão, demorava mais tempo a lamentar-se do que a apanhar a caneta. É bom saber que tenho algo de um grande escritor: a irritação, não a gota. Tenho ali, vou buscar...
Afinal não encontrei, nem lá dentro no armário: “História da Gota e de Gotosos Famosos”. Já sei... Não julguem. Foi oferecido. Verdadeiro esqueleto no armário. Não encontrei, estou destroçado. Mas encontrei o “Fausto” do Goethe - eu sabia que o tinha. Abro: “Razão lhe chama, e serve-lhe afinal/Para ser mais bicho que qualquer animal.” Por exemplo, da janela aberta ouço a minha vizinha do lado, está ao telefone, parece preocupada, mas depois: “tenho o voucher da massagem há um ano e agora com o hotel fechado como é? Vai ou não haver reembolso?” Prioridades, caro Goethe.
820 mortos até agora em Portugal. Há pessoas que querem voltar à prisão, pois não têm meios de subsistência. Dá que pensar. Mortos em Espanha 22.157, em Itália mais de 25.000. Os primeiros não têm medo. Já aqui disse, gosto muito de Espanha e dos espanhóis, mas não têm medo de nada, e isso pode não ajudar. Já os italianos não acreditam em nada, principalmente nas entidades reguladoras. Mas não será só isso... O timing não ajudou, e eles foram os primeiros a receberem o caos.
Por falar em caos: o bater das asas de uma borboleta na Ásia pode desencadear um furacão nos Estados Unidos. A pandemia não é bem isso mas anda lá perto. Era bom que acontecesse com a poesia (pandesia?). Dizem eles que deus está no erro, na pequenina pedra que pára a engrenagem do raciocínio. Dizem também que devemos ter uma suspensão voluntária do cepticismo, contra tudo o que aí vem. Precisamos dos teóricos que “usam os cérebros, são pensadores e estão sós” e dos experimentadores que “usam as mãos, são artesãos e trabalham em equipa.”
E agora? Cá estamos para recuperar os danos, temos de viver, não há outra hipótese, seguir em frente. A Marta Chaves: “Perdi a cabeça/e ainda assim/ouço música.” Tentar não entrar em ebulição, embora em sublimação não esteja fora de questão. Não esquecer das vidas curtas que deram muito, nem das vidas longas que valem o mesmo: uma vida é uma vida. Estabelecer prioridades, pensamos nós que o ser humano quer ser melhor. Não no geral. Mas muitos vão melhorar e repensar. O bater das pestanas de uma mulher pode provocar um furacão no coração. Até depois de amanhã.