Diário de um recolhimento 1


26/03/2020

Diário de um recolhimento.
Abro “A Criação do Mundo” do Torga: “Embora individualistas, não concebíamos uma sociedade de solidões.”
Lá fora está um sol sem pessoas, um sol impessoal, um sol sozinho. 
Aqui eu e os miúdos. Dou-lhes de comer. A minha única utilidade é essa. A Bet batalha contra vários inimigos invisíveis: os vírus. Não é um, são milhares de milhões. Passa o dia no hospital e vem para as refeições connosco. Não é uma questão de coragem, é normal. 
Quero dizer, nela parece normal.
Bebo uma Corona. Juro que sim. Quem mais jura mais mente e dizem que as acções da cerveja caíram devido aos americanos. Há um sem número de piadas nas redes sobre isto. A coincidência dos nomes, também Hamlet tinha coroa, e o príncipe Charles que já é velho para ser rei mas teve direito à sua corona. Deu ontem no telejornal.
“São as perguntas que nos fazem mexer” diz uma personagem do Afonso Cruz, mas não só. A sarna também o faz. O medo faz as duas coisas: mexer e parar.
O medo nada tem a ver com a cobardia. Podemos ter medo e ser corajosos. “A coragem treina-se, o entusiasmo não”. Li isto há pouco no Bouvier. A Bet tem os dois: a coragem e o entusiasmo.
Portugal:
Os vírus já mataram 60 pessoas em Portugal. Um vírus não mata 60 pessoas, são precisos muitos. Os assassinos silenciosos. A polícia nada pode fazer, não há jaulas, não há algemas. A única hipótese é fugir para dentro, fugir dos outros, não correr em direcção deles, não os beijar, não os abraçar, não os insultar em pessoa - os insultos mandam perdigotos -, não lhes bater - exige contacto físico -, não dar linguados - pobres de nós, pobres adolescentes. Como se namora agora? Como manter o 
amor? Aos 16 anos as línguas são importantes, as mãos também. Mas está tudo cheio de vírus, são línguas e mãos que amam e matam. Ai de nós.
Não desesperemos. É essencial resistir. E nem é preciso muito. 
Aqui estamos, como todos de nós. Aqui ficaremos até ser preciso.
Tantos mortos no mundo, não só da doença da moda, é certo, mas também estes. Muito mais mortos do que imaginamos - como dizia o Pessoa. Talvez cartas de amor, 
talvez outra vez cartas de amor, se possível ridículas. “Meu querido Bebé pequeniníssimo”. “ Adeus, amor; pensa às vezes em mim, quando não estiveres distraída... Estou convencido (por minha parte) que gosto de ti. Sim, creio poder afirmar que tenho para contigo uma certa afeição. Um regimento de beijinhos, do teu, sempre e muito teu. Fernando”. Assim não são precisos linguados. Que digo eu? Deliro!
Escolho na estante ao acaso e abro ao acaso: é um livro da Marta Chaves: “Acordava,/abria a porta/e a casa saía.”
Nem mais.
À noite robalo assado no forno.