Diário de um recolhimento 12
06/04/2020
Chuva lá fora e chuva cá dentro. Estou cinzento como a pele de um elefante, olho para o Porto do outro lado da janela e sinto-me em baixo, como se após uma derrota, como se nada fizesse sentido. É assim que acordo hoje, com a chuva dentro de mim, pior que a chuva lá fora. A Bet saiu e os miúdos dormem. Vou até à sala e no trajecto tomo a decisão de me iluminar por dentro, afasto as nuvens com o braço esquerdo e olho - coisa que não se deve fazer - directamente para o sol, tapando os olhos em pala com a mão direita. Tão simples como isto. E fiquei melhor, chuva lá fora e sol cá dentro.
Abro um livro da Cláudia R. Sampaio: “Ela pensava que é bom cair/porque normalmente não se pode cair em/nenhum lugar/querem sempre levantar-nos,/não entendem que é preciso cair,/é preciso estar junto do chão para depois/se subir em verdade e ver tudo.” Fecho o livro e o sol torna-se mais quente, já não é o sol depois da chuva, é o sol depois do sol. As crianças vão aparecendo na sala. Nada de Herodes hoje. Tocam à porta e chegam dois livros novos, dois Antónios: o Poppe e o Barahona. Mais sol ainda. Daqui a nada apanho um escaldão.
Segundo a Rita o horóscopo diz que devia sair mais de casa. Está bom de ver que a DGS não tem grande influência na astrologia. Fiquei curioso e fui ver: “o cônjuge não tolera mais mentiras, distorções e experiências mal-resolvidas do passado. A verdade deve imperar nesta semana.” Mal por mal prefiro a DGS, o zodíaco chama-me mentiroso. Abro “Mal Por Mal e Outros Contos” do Fitzgerald: “o futuro é essa boca iluminada no flanco do navio; este caminho soturno, turbulento, é, muito confusamente, o presente.” Lá vêm as nuvens outra vez! Lembro-me que tenho para aí um livro de textos esotéricos do Pessoa:
“A astrologia é verificável, se alguém se der ao trabalho de a verificar.” Mau! Acho que vou parar com isto. Também Pratt respeita este misticismo. Eu sou pouco místico, mas pelos vistos gosto de alguns místicos. O Miguelinho: “O teu relógio está a andar!” “Pois está.” ”Ele nunca pára?” ”É como o tempo, Miguel” ”Está mau tempo, papá!” Nem sabe ele da missa a metade, mas acerta. O relógio parou e nós com ele.
A epidemia, pandemia, pã demia fosse, já ceifou 311 vidas em Portugal, ou pelo menos pensa-se que assim seja, é difícil contabilizar, também se morre de outras doenças e possivelmente morre-se de outras doenças em casa, sem ir ao hospital por medo da epidemia. Não se trata de morrer da cura, mas de morrer por não procurar cura. É complexo e trágico. Lembro agora uma frase do Gonçalo M. Tavares no “Perna Esquerda de Paris”: “Certos homens transmitem epidemias de segredos: os poetas. Não é uma doença, mas também é uma doença.”
Antes estivesse nas mãos dos poetas, embora, como em todas as ocupações, também existam poetas imbecis, como é óbvio. Os poetas também dizem impropérios, muitas vezes uns aos outros, outras quando batem com o dedo mendinho do pé (foi um poeta que o disse) na esquina afiada do pé da mesa. O pé da mesa triunfa sempre sobre o pé do poeta. É o acidente doméstico mais comum, logo a seguir às contusões corto-perfurantes provocadas por facas ou objectos afiados como o pé de uma mesa.
Estou aqui há muito tempo...
“Enquanto fores vivo não escaparás ao tédio, isto se tiveres sorte.” Continua o Gonçalo. O tédio é necessário para criar, dizem os pedopsiquiatras. No meu caso parece não estar a funcionar, mas também não faço parte da população em estudo. Continuando com os poetas, era bom que um verso pudesse ser afiado, quase até ao limite da cadeira e pudesse ser lançado por um deus-alado-criança-obesa com a precisão cardíaca do passado, agora directamente ao coração do vírus, ao seu core, depois de atravessar a já famosíssima coroa do mesmo.
Ainda chuva lá fora, mas agora o sol completamente instalado cá dentro, o horóscopo que me chamou mentiroso no lixo das pequenas coisas inúteis, vou guardar o Pessoa com todo o respeito e bato com o dedo mendinho do pé direito (já sei, foi no Jorge de Sousa Braga que li mendinho) na perna da mesa, digo um impropério que no Porto se chama caralhada e vou ao pé-coxinho em direcção à cozinha para pôr gelo, o Miguel pensa que é uma brincadeira e salta atrás de mim, o Afonso olha de esguelha, já está habituado. Pego no Gonçalo (salvo seja): “Certas vezes certos versos são mais intensos que certas manhãs lá fora a sorrir muito para certas pessoas.” Et voilà!