Diário de um recolhimento 3

28/03/2020

Diário de um recolhimento
Hoje nem deu para ver como estava o sol, saí de casa antes de todos acordarem para ir comprar comida. O predador sai para caçar. Ou assim parece porque os poucos que encontro fogem de mim.
Afinal está mesmo sol com nuvens napolitanas como lençóis, finas como o gaze dos hospitais. Nuvens que não tapam nada, como os justos, se os houver. Há sim, conheço três ou quatro.
Pela estrada fora (nada de Kerouac aqui, ainda não cheguei lá), vazia de carros, apetece mesmo acelerar e é o que faço ainda no espírito de “Ford v Ferrari” que vi ontem. Só me faltava uma multa agora, vinha mesmo a calhar.
As peixeiras resmungonas e simpáticas como sempre espetam-me camarões e amêijoas vivos na cara. Pergunto se são frescos e uma dá-me um tabefe no cachaço (lá se vai o distanciamento físico). 
Trago também lulas e linguados, depois pão, frutas e legumes. Neste barco ninguém vai morrer de escorbuto.
Quando todos acordam os camarões estão prontos.
Voltando ao Kerouac, vou procurá-lo à estante, somos uma espécie de anti-Kerouac, somos Pela Estrada Dentro, para dentro de nós e dos nossos. Acho que quem morar numa caravana não pensa assim. É como o caracol, anda com a casa às costas. Abro à sorte como sempre e como sempre tenho sorte:
“Não tardou a anoitecer, um crepúsculo cor de uva, um crepúsculo púrpura sobre pomares de tangerineiras e extensos campos de melões; o sol era da cor de uvas espremidas, raiado de vermelho-borgonha, os campos tinham a cor do amor e de mistérios espanhóis”. Uau!
Na página a seguir um texano tenta vender-lhe uma caravana...
Porque hoje é sábado, a Bet fica em casa e temos a família toda. Isto apesar de ela estar a trabalhar do outro lado da mesa. 
Porque hoje é sábado lembra-me um poema do Vinícius de Moraes, o branco mais preto do Brasil: “O Dia da Criação” e corro a ouvi-lo no Spotify. Tem uma epígrafe da Bíblia - vejam só -, e assenta em hoje ser sábado e no erro de Nosso Senhor em ter criado homem e mulher “ser vegetal, dona do abismo”. Que lindo. Saravá!
De tarde ouço Vininha com todos os seus parceiros. E leio mais versos do poetinha:
“De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.”
Ontem também escureci. Hoje estou de volta. Será que estes vírus, esta doença está cá para fazer jus ao “Dia da Criação” do Vinícius?
Afasto esse pensamento e lembro-me de um dos doentes mais conhecidos e queridos: Luís Sepúlveda. Tenho muitos livros dele em casa dos meus pais, mas aqui desencantei o “Encontro de Amor num País em Guerra” - que título lindo. 
Abro ao acaso da sorte e calho logo a seguir a uma cena de amor e sexo:
“Saí da casa flutuando num ar leve. Os meus pensamentos eram uma mistura se sabores, luzes, cores, aromas, melodias. Charles Aznavour repetia Isabel Isabel Isabel porque eu lho ordenava, e a certeza de saber que o mar Morto é tão salgado que os corpos não conseguem ir ao fundo contribuía para a minha felicidade. Sentia frio, calor, medo, alegria, tudo junto e ao mesmo tempo.” Saravá, Luís.
Que voltes rápido.
5700 mortos em Espanha. O vírus tem um nome espanhol. Na Wikipedia: vírus vem do latim vírus que significa fluído venenoso ou toxina, das 1.739.600 espécies de seres vivos conhecidos, os vírus representam 3.600 espécies. Alguns são bons. 
É como o ser humano.
Hoje homenagem a Espanha, país que me deu mais do que tirou, tanto em amizade como em ensinamentos médicos e cirúrgicos.
Um dos meus escritores espanhóis favoritos é Javier Marías. Pego nas “Negras Costas do Tempo” abro e leio: “‘Já passou, já está, já passou’, costumam dizer as mães aos filhos para acalmá-los depois de um pesadelo ou de um susto ou de alguma dificuldade, dando uma importância desmedida ao presente, quase como se declarassem: ‘O que já não é, nunca foi.’”
Antes assim fosse.
Ligo o Spotify e ouço Aznavour.




O Dia da Criação:

Charles Aznavour: