Diário de um recolhimento 4

29/03/2020

Diário de um recolhimento
Acordo com uma música na cabeça, como acontece frequentemente. Chega a ser irritante ter de passar o resto do dia com o mesmo tema cá dentro, mas desta vez não. Desta vez é “My Funny Valentine” pelo maravilhoso e desgraçado Chet Baker.
Adoro andar por casa enquanto todos dormem, gosto do silêncio e tenho alguma privacidade. Corro a ouvir a música cantada pelo verdadeiro Chet e não pela cópia na minha cabeça que considero boa, mas não o bastante.
Ontem recebi três mensagens de grandes amigos: “Saravá” do Hugo e do Manel Zé, “Saravá” respondi e uma do Agostinho com uns versos de um poeta que gostamos todos muito, o David Mourão-Ferreira e que se adequam ao texto de ontem:
“A nossa noite ontem à tarde
Foi a manhã por que
Esperávamos”
Claro que vou logo abrir David, mas não escolho “O Jogo de Espelhos” do qual gosto por inteiro, antes a obra completa e calho no “Baptismo”

“Para atrasar a morte vamos abrir a noite
Com música de jazz   Percorrê-la depois 

Num barco de borracha   Celebrar o segredo
Enforcar a memória   Descobrir de repente

Uma ilha que nasce dentro do teu vestido

Chamar-lhe Madrugada   Adormecer contigo”

Já vi que hoje é dia de jazz.
Abro as persianas e o sol, insistente como um raio (que pobreza de escrita - sol e raio, vejam só), lá está a fazer troça de todos nós, reclusos. Como se sentirá um prisioneiro? Imaginem, é bem pior que isto de poder sair para comprar comida e ter a família à nossa espera em casa. E o sol, tão claro como uma página em branco, tão doloroso assim de repente, como a maravilhosa Sophia disse: “E dói-me a luz como um jardim perdido”, aparece às gargalhadas a comer-nos por dentro. 
Agora imaginem isto tudo, só que com chuva e céu de chumbo.
A Betânia acordou e deu-me a notícia: o monstro matou um rapaz de 14 anos em Portugal. É uma lotaria mórbida, um ser implacável e invisível, um estranho que nos bate à porta. Sem saber como nem porquê dirigi-me para a porta da entrada e tranquei-a por dentro.
Quando os miúdos acordaram chamei passarinho a todos em homenagem ao meu pai. Tive medo de dar a notícia mas dei, tem de ser... Não ficaram surpreendidos e não me pareceram assustados. Sabem que é uma doença, e que esta mata. Não me apetece ligar a televisão mas ligo. Merda para isto tudo.
119 mortos + 1 (esta criança). Sabe-se também que a doença já chegou às prisões - mais uma coincidência, eu a falar neles, nos reclusos. Somos todos reclusos.
Jazz então: “In a sentimental mood” Duke Ellington e John Coltrane; “Take Five”; Dave Brubeck; “Cantaloupe Island” Herbie Hancock; “Flamenco sketches” Miles Davis; “ A night in Tunisia” Bud Powell; e claro “A love supreme” John Coltrane. Desculpem os que adoro mas que aqui não estão, hoje não era o vosso dia.
Decidi dar tréguas à minha pele na cozinha - queimo-me sempre - e à própria cozinha - queimo-a sempre - e peço comida aos grelhados da esquina. Recebo o miúdo das entregas que vem protegido com máscara e luvas, eu também com máscara e luvas. Dei uma gorjeta como nunca. Bem hajas amigo. 
A minha filha mais nova gosta de ir para a cozinha quando lá estou. Diz que está à espera do fogo.
Acabo com uma homenagem ao menino que morreu hoje, a homenagem impossível, tão impossível como roubar as asas de Ícaro, tão impossível como perder o amor pelos meus filhos, como não me magoar com nada, como não morrer um dia também eu. Ainda agora o sol! E junto aos meus poetas solares de hoje - David e Sophia - outro poeta solar, Eugénio para o menino que não pode resistir:
“Hoje roubei todas as rosas dos jardins
E cheguei ao pé de ti de mãos vazias.”



Chet Baker:

Duke Ellington; John Coltrane:

Dave Brubeck:

Herbie Hancock:

Miles Davis:

Bud Powell:

John Coltrane: