Diário de um recolhimento 2
27/03/2020
Diário de um recolhimento.
Lá fora o sol, soprado pelo vento, avança até ao fim do dia. No fundo é disto que se trata: ver o vento a empurrar o sol até não podermos mais ver o vento a empurrar o sol, porque está nublado ou porque ficamos nós nublados ou até com o próprio recolhimento a expandir os seus limites até muito dentro de nós.
Não fiz a barba outra vez, pica nas bochechas dos meninos, os pêlos como uma espécie de ponteiro do tempo a que não se tem de dar corda. Não devíamos envelhecer neste período, como é que envelhecemos se o tempo está parado?
Sabemos do tempo pelos cabelos, pelas unhas que não param de crescer. Que cresçam nos mortos é mentira, é a pele e a carne que encolhem por desidratação.
A Itália ultrapassou as 8000 mortes (oito mil). Hoje homenageamos a Itália cá em casa: pizza ao almoço e esparguete ao jantar. Adoro Itália. Visitei-a com os meninos que estão contentes pelas refeições do dia e tristes por Itália.
60000 pessoas por dia coronizadas; 500000 infectados. Os vírus atacam os velhinhos, os lares. É um bicho cobarde. É feio!
Ofereci-me para a urgência mas ainda não me querem, um ortopedista pode ser um estorvo, mas tenho esperança.
Em todo o lado vejo o lema bonito, mas infelizmente mentiroso: “Vamos todos ficar bem”. Não vamos. Podemos tirar muito de positivo nisto, mas não vamos todos ficar bem.
Hoje estou nocturno, negro, zangado.
Recorro outra vez ao Torga, ao seu Diário. À sorte abro no dia 20 de Agosto de 1970, em Coimbra e encontro o poema:
“Por isso é que lavei as mãos e o coração,
Limpei a pena,
Aguardei, paciente,
Que a inspiração viesse,
E dou, agora,
Compenetradamente a esta hora
Um sentido de prece.”
Resolvo voltar ao Afonso Cruz, aos “Guarda-chuvas”, ele que outro dia me disse que vemos convergências porque a nossa atenção está para aí virada. Prefiro acreditar em alguma magia nestes dias. Devemos lavar as mãos e o coração. Uma personagem que carrega uma Bíblia faz-me abrir a que tenho na estante.
Novamente à sorte calho em Mt 15, 19-20: “Do coração procedem as más intenções, os assassínios, os adultérios, as prostituições, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfémias. É isto que torna o homem impuro. Mas, comer com as mãos por lavar não torna o homem impuro.”
Confesso que não ajudou. Mas a magia de lavar as mãos. Nem Pilatos (e não pilates, desculpem a má piada) as lavou tanto como nós.
Por isso volto ao Afonso e leio nos Fragmentos Persas:
“No deserto as flores desabrocham na imaginação”, mais à frente: “Aos homens caberá lutarem contra a realidade”.
E fico outra vez melhor.
Mais um dia, os meus filhos discutem. Hoje acalmei tantos conflitos que já tenho currículo para ir para a Faixa de Gaza mediar o conflito israelo-palestiniano.
Tantas religiões neste texto.
E nenhuma consegue ajudar.
O bicho é mau, e temos de ser nós a matá-lo.
Vamos conseguir.
Sim.
Vamos conseguir.