Diário de um recolhimento 5
30/03/2020
Diário de um recolhimento.
O sol deve ter ouvido os meus lamentos e hoje fez gazeta, ou então greve. Quem sabe o que ditará o sindicato das estrelas com planetas habitáveis - para já. O sol com um cartaz gigante: “Abaixo com o trabalho contínuo! Até Deus descansou! Vamos todos arrefecer!”
Segunda-feira, começa a semana e não começa nada.
Mas há sempre alguma coisa para fazer quando se está em casa: cozinhar, arrumar, ler muito, brincar com as crianças, ver documentários (hoje talvez Miles se me deixarem) e filmes. O telejornal tão temido mas tão necessário.
Acabo com o tema muito debatido da minha barba. A minha mãe “faz-te mais velho”; a Bet “não sei que te diga”; os meus filhos “pica”; eu, ao espelho: em vez de intelectual, pareço um indigente, uma espécie de Bukowski mas sem talento, um Herberto que se tivesse dedicado à lida da casa em vez de ser o génio que foi, um Hemingway que nunca tivesse saído de casa.
Resultado: faço a barba.
E vou à estante procurar os três barbudos.
Herberto:
“aquilo que se escreve é o próprio corpo pregado como uma estrela”.
Bukowski:
“Mamã, o que é que aconteceu ao papá?
“Era Poeta.”
“O que é um poeta, mamã?”
“Ele dizia que não sabia. Vá, lava as mãos que vamos jantar.”
“Ele não sabia?”
“Isso mesmo, ele não sabia. Vá, já te disse para lavares as mãos...”
Hemingway:
“O que é que disseste?”
“Disse que poderíamos ter todas as coisas do mundo.”
“E podemos.”
“Não, não podemos.”
“Mas nós podemos ter o mundo todo.”
“Não, não podemos.”
“Não há sítio onde não possamos ir...”
“Não, não podemos. O mundo deixou de ser nosso.”
Mais uma vez à sorte, mais uma vez: uau!
Fui ler o que escrevi há um ano, neste mesmo dia, quando o mundo ainda não tinha dado a volta e ainda nada o fazia prever. Ou fazia mas nós não nos apercebemos. Como aquele silêncio antes das verdadeiras tempestades, ou os pequenos indícios que deram origem às grandes guerras. Abro aspas para mim mesmo, que estranho:
“Todos temos medo. Existem várias formas de o enfrentar. Uma boas outras más e outras muito más. Nunca culpar os outros pelos nossos medos. Nunca apontar para fora quando tudo se passa cá dentro. ´Tango on´ como no ´Scent of a Woman´.
A crónica do Lobo Antunes a recordar-me os relógios de pulso desenhados a caneta.
A Inês nervosa com o espectáculo de dança de amanhã:
Falhamos e tentamos
Todos temos medo
´Tango on´,meu amor.”
Há um ano.
Hoje vamos em 140 mortos. Amanhã vai ser pior. Ficar em casa é obrigatório.
Uma casa não é uma construção de tijolos, é uma construção de pessoas; não é uma construção de cimento armado, é um conjunto de emoções cercado de amor por todos os lados. Se assim não for não é uma casa, é tudo menos uma casa, é um inferno.
Acabo com aquele que me lembrou os relógios de pulso desenhados a caneta, o grande António, com frases tiradas (vou deixar de referir isto) à sorte dos seus livros de crónicas:
“Quando o coração se fecha faz muito mais barulho que uma porta.”
“(Não sei se consigo)
Dizer aos meus pais que gosto muito deles antes que anoiteça senhores, antes que anoiteça para sempre.”
“Fomos de certeza felizes porque as paredes do coração eram tão finas que se podia escutar do outro lado.”
“E tem, de certeza, pena de não conseguir gritar
- Ohey Silver
E partir, a galope, ao encontro da vida.”
E para terminar:
“Prometo que assim que puser o mundo nos eixos volto aqui.”
Saravá, António.
Hoje é um dia de blues, não sei bem porquê, mas é dia de “Need Your Love So Bad” com o B. B. King.
B.B King: