Diário de um recolhimento 7

01/04/2020

Dia das mentiras. A minha mãe ligou para a Inês para ir ver um arco-íris à janela. Não deixa de ser irónico ter acertado no símbolo do vamos ficar bem. Não quero ser o mau da fita, mas, se estamos a falar da humanidade, é claro que vamos ficar bem. Apesar de tudo, alguns vão morrer, já morreram, e não são poucos. A humanidade é como andar no trânsito: somos todos bem educados até entrar num carro, “Olha para aquele ao telemóvel! Que imbecil!” Mas nós já o fizemos! É como sair à rua por nada. 
Ou quando dizem agora que o ser humano vai mudar com tudo isto, vai pensar duas vezes antes de ser ser humano outra vez, vai ser mais solidário, menos consumista, menos egoísta. Tretas! Ou como dizem os anglo-saxónicos: Bullshit! Mais uma vez o trânsito: sempre que vemos um acidente abrandamos e seguimos durante uns quilómetros a velocidade controlada, passados cinco minutos estamos na mesma, tudo esquecido. Faz parte da nossa natureza. Vai ficar tudo na mesma! Temos três lideres mundiais a confirmar, desculpem, a piorar tudo isto. Não contando com os outros... Dia das mentiras.
Comecei mal. Nem falei do sol, nem de literatura. Hoje procurei um poema do David por outra razão e encontrei este: “Olhar de frente o Sol     Assim se aprendem as letras iniciais da Solidão”. Em parte é verdade, mas não comigo. Preciso de ti Sol, preciso da tua luz na sala, do teu calor, mas de solidão não sofro: “Papá!!! Anda ao quarto do Assonso buscar um dinossauro para mim!” Lá vou com toda a cautela, até tropeçar no penico do xixi e cair em cima de 40 brinquedos pontiagudos. Tento levantar-me com cuidado. Mas a sala parece o cenário do Endgame dos Vingadores: olho para o lado com a cervical a estalar e sou ameaçado pelo Homem-Aranha, do outro lado o Buzz Lightyear começa com a ladaínha do costume e um comboio apita ao longe. Em pânico tento levantar-me outra vez, mas os abdominais... O pequenito encontrou um garfo e parece o Wolverine cheio de adamantium e o Woody vem montado no carro do Batman atrás dele. Fujo e caio na casa da Barbie onde me sinto um Hugh Hefner sem classe até ser expulso por Action-Mans (assim mesmo e não men) disfarçados de Ken. Não, não sofro de solidão.
Antes da Bet chegar para almoçar (azevias fritas) vejo o Cascão a lavar as mãos nas redes sociais, terá o Maurício autorizado isto? Espero que sim como resposta a esse imbecil chamado Jair Bolsonaro. Segundo o Homem-Aranha, o herói de Nova Iorque: “Caramba, este tipo ganha o prémio de vilão mais idiota da cidade!” Não apostaria só nele.
Honra a Nova Iorque, o símbolo e a outsider da América em sofrimento.
187 mortes em Portugal, 230 nos cuidados intensivos. Em Espanha 864 mortes nas últimas 24h. 12500 mortos em Itália. Dizem que o pico não é pico, é planalto. Antes fosse dia das mentiras.
A Bet chega com uma vida nas mãos: um homem morreu, deram-lhe treze choques no coração e no fim ficou vivo, ressuscitou. A morte vinha convicta com a sua foice. No fim foi-se embora com o rabo entre as pernas. Há-de ganhar, mas não hoje. Levanto o copo a isso. Não hoje. Hoje tornou-se intermitente, como no livro do Saramago: “Evidentemente não há que ter pena da morte”.
Logo a seguir recebo no correio dois livros da Cláudia R. Sampaio. Guardo a tarde para o Corto Maltese e para a Cláudia. Nada como poesia após uma vida salva:
“Sempre me recusei a arder como os outros”.
O Abraham Pais: “ainda não sabemos o que faz com que o electrão tenha peso”. Tem o peso de uma vida! Tem o pequeno peso de uma vida. É preciso lembrar que há vidas a salvar além da COVID. Há pessoas com enfartes, AVCs, cancros, gripe e outras que tais. O coronavírus tem do dias contados. Vai parar ao Almanaque de Doenças Excêntricas e Desacreditadas do Dr. Thackery. Vai juntar-se ao “Desencanto Fúngico”, à “Infecção do Terceiro Olho”, à “Lassitude Poética”, à “Pandemia Y” e ao “Síndrome da Culpa Absoluta” entre outros. Treze choques! Dia das mentiras, número do azar.
Junto os livros todos do dia para tentar organizar isto. Não que seja absolutamente necessário. Começo pelo fim para confessar a leitura em diagonal de tão belo compêndio de medicina menos que alternativa, para escolher a doença denominada “Síndrome da Culpa Absoluta” que obrigou o Cascão a lavar as mãos e à morte a baixar a foice por uns segundos. Cláudia:
“Estamos aqui e eu quero dizer-te
Que é de ti que vêm as casas
É de ti que vêm os ossos
E se quiseres podemos ser como as pontes:
Eu num lado, tu no outro
E no meio a distância que
Quisermos dar”
Einstein perguntava-se se a lua só existia quando olhamos para ela, um pouco como o pinheiro que cai sozinho na floresta, como o dia das mentiras ou o número treze, ou de como o peso de um electrão pode salvar uma vida. O Homem-Aranha - acreditem ou não - também refere que “chega a um ponto...que não resta escolha senão recorrer à poesia”.
Despeço-me com o nosso amigo Corto Maltese, marinheiro com espírito heróico em tempos obscuros: “Sim, somos doidos, mas o mundo é belo porque é variado.” 
Putzgrila!