Diário de um recolhimento 8
02/04/2020
Já não é dia das mentiras. E no entanto, mente-se.
De novo o sol lá fora e cá dentro. Tenho muitos sóis dentro de mim, embora por vezes pareça casmurro. Os meus sóis são aqueles de quem gosto, não são apenas raios de luz, são mesmo sóis inteiros. São sóis e buracos negros ao mesmo tempo pois fornecem luz e têm tanta gravidade que não deixam que essa luz saia de dentro de mim.
O Stephen Hawking explica isto de forma menos lamechas.
Mas também diz que “paradoxalmente, quanto maior for a porção de combustível com que a estrela começa, mais depressa este se esgotará.” É um grande argumento contra os poetas e as grandes paixões, mas a experiência mostra que há algo de verdadeiro nisto.
Hawking (um nome muito falcão) também refere um grande cientista com nome de personagem Chandrasekhar, um indiano brilhante, que compreendeu que há um limite para a repulsão.
Ora isto pode ser uma resposta para a humanidade, embora eu duvide.
Os buracos negros foram previstos antes de serem comprovados. É como o amor. A ciência explica tudo, até o que não quer explicar. Os buracos negros são a “singularidade onde o tempo acaba”, diz Stephen. Só a poesia é capaz disso sem explicação científica, talvez o sexo também o consiga: suspender o tempo! Mas este só até ao precipício final em que quase podemos morrer. Há quem fume um cigarro para compensar.
Estou nestas divagações loucas, neste lado da mesa, quando o Miguel se senta do lado oposto - um pouco como monarcas que se toleram: a mesa é comprida - uma espécie de “passa-me o sal!” E sai-se com esta: “Tinha vontade de querer água”. Fui buscar água e pensei que o problema do mundo é mesmo esse: a falta de vontade de querer. É por isso que agora estamos relativamente bem como colectivo: temos vontade de querer. Mesmo que tenha sido o medo a criar esta vontade.
Chego da cozinha e o outro monarca tem uma pedra na mão e aponta para uns espelhos que temos na sala: são óptimos para o nosso amor-próprio pois encolhem a barriga, como os das lojas de roupa. Então gritei: “A pedra parte vidros! Esse é o potencial da pedra.” Começo a falar como as personagens do Afonso Cruz. Lembrei-me do Oscar Niemeyer, num livro oferecido há uns anos pelo omnipresente Agostinho, “As Curvas do Tempo”: o potencial da pedra é conseguir as curvas, essas que tanto atraíram a sua arquitectura:
“Não é o ângulo recto que me atrai/nem a linha recta, dura, inflexível/criada pelo homem./O que me atrai é a curva livre e sensual,/a curva que encontro mas montanhas/do meu país,/no curso sinuoso dos seus rios,/nas ondas do mar,/no corpo da mulher preferida./De curvas é feito todo o universo,/o universo curvo de Einstein.”
Cá está: arquitectura, poesia e ciência.
Hoje estou desanimado. Presumo que isso se passe com todos em determinada altura deste confinamento forçado. Não nos podemos queixar, não devemos queixar-nos. Vivemos um bom tempo para viver, mesmo os que dizem que não. Vivemos num país bom para viver. Estou arrependido de ter dito que estou desanimado, mas a verdade é que estou um pouco e isto vai passar e não somos de ferro.
Oscar a dada altura comenta “Estou sozinho em meu escritório, cansado da vida.” Mas termina assim: “uma nova canção surge de repente...os versos célebres de Nelson Cavaquinho: ´Tira o teu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor.´Mas o que me incomoda não são os desencontros da vida, mas a dor imensa dos mais pobres diante do sorriso indiferente dos abonados.” Corro para o Spotify. Grande Nelson Cavaquinho.
O pequeno chama-me outra vez, desta feita para me mostrar estrelas no escuro do quarto.
Tenho de mostrar o “Cosmos” do Carl Sagan aos meus filhos. Lembro-me do encantamento que senti em criança ao vê-lo. Quando cresci comprei um casaco de bombazina como o dele. Acabo com um poeta que era professor de Física-Química, chamava-se Rómulo Vasco da Gama de Carvalho e não precisaria de mudar o nome para António Gedeão: “Pois não é evidente, Galileo?/Quem acredita que um penedo caia/com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?” Mais cedo tinha contado à Inês como Aristóteles descobriu que a terra era redonda em 340 a.C.