Diário de um recolhimento 9

03/04/2020


“ Tenta falar-me das coisas indestrutíveis 
momentos passados
um pecado mortal, um sonho
Para onde olhar para escolher coragem?
Para escolher o impossível?”
A Inês teve um pesadelo. Não nos quis contar. Não posso controlar os teus sonhos, mas posso ajudar-te à alegria.
O vírus continua a empilhar o fogo: 246 mortos, 245 nos cuidados intensivos. Espanha com 117000 casos e 11000 mortos. 1200 mortos nos Estados Unidos nas últimas 24h: não conseguem sepultar todos. Parece um ataque de zombies, um filme de ficção científica.
Em casa não há silêncio, mas lá fora... Abre-se a janela e ouve-se o ruído do vazio, a falta de carros, as buzinas substituídas por pássaros e folhas ao vento. Já falei muito de silêncio por aqui. O silêncio total não existe, só a ausência de ruído. Irmãos gémeos, o silêncio e a lentidão, arruinados pela nossa estranha forma de vida, começam a renascer das cinzas. Presumo que por pouco tempo. Quem sabe? Pode ser uma das (r)evoluções. A velocidade só é importante na luz e no desporto. 
Como diz Maffei (um italiano!): “Esquecemo-nos que o cérebro é uma máquina lenta e este desejo de imitar as máquinas velozes criadas por nós torna-se fonte de angústia e frustração.” Precisamos de tempo e de lentidão. Estamos a ter os dois à força, mas pode ser que se aprenda, ou pelo menos alguns de nós lá cheguem, eu próprio, que não sou mais do que os outros e que também corro diariamente para não chegar a lugar nenhum. Mais à frente, no seu “Elogio da Lentidão” diz Maffei: “Bulimia de Consumos, Anorexia de Valores”. É o título de um capítulo, mas podia ser de uma vida.
Ontem Pratt com o Corto, fez-me lembrar uma livraria de viagens em Paris que teve por padrinhos (adorava ser padrinho de uma livraria) Hugo Pratt e Ella Maillart (que, além de aventureira, era atleta de hóquei em campo como o meu pai e velejadora olímpica). Fiquei a saber disso no “E a Noite Roda” da Alexandra Lucas Coelho, a livraria é a Ulysses que está fechada pelo vírus. Soube agora que a própria Alexandra tem um livro já lançado, refém nas livrarias. Está amarrado com as mãos atrás das costas e amordaçado. O vírus parece uma nova censura. Vamos libertá-lo? É um bom propósito.
Ainda a Alexandra: “De tanto bater o meu coração não parou”, quando todos pensamos o contrário, quando tentamos travar o coração a todo o custo pelas mesmas razões que não queremos a lentidão ou o silêncio. Temos medo dos nossos próprios sentimentos, ou não bem medo, uma espécie de vergonha tímida, como se estivéssemos sentados agarrando os joelhos encolhidos esperando que ninguém nos note. Mas alguém há-de notar, alguém que interesse, porque “se for amor deixará de ser crime”.
Gostava tanto de estar com outras pessoas, principalmente com os meus amigos, tê-los cá em casa, fazer comidinhas boas para eles (às vezes fiascos, mas enfim), beber uns copos, rir por nada, partilhar livros e experimentar os meus chapéus, fazer figura de urso até eles me cobrirem com um cobertor e saírem em silêncio para não me acordarem depois de adormecer a meio de uma frase (já aconteceu). Agora tenho uns versos do Rui Costa: “Escreve muito ou pouco,/não te sei dizer. Mas escreve/somente porque não podes/convidar toda a gente a tua/casa para uma festa de flores,/música e vinho.”
Comidinha (que o corrector mudou para “cotidiano”, estúpido corrector), fui buscá-la ao Miguel Esteves Cardoso, um rapaz dotado que adoro e que adora comida e lentidão e silêncio - acho eu. Diz ele: “Quando se está com uma cereja na boca, numa noite fria de Junho, falando de cerejas e de junho com o nosso amor, o resto é muito mais pequeno e muito menos importante do que se pensa.” Pois é. Neste caso a palavra cereja significa tudo e acho que será bom se aproveitarmos isto tudo, esta loucura toda, para partilharmos as nossas paixões e as nossas pequenas coisas - incluindo comidinhas - com o nosso amor.
Como devia ter acabado no parágrafo anterior, não sei muito bem como continuar, a não ser talvez que sinto saudades vossas. De todos, de alguns menos, de outros mais, de outros intensamente, de outros com alívio por este descanso momentâneo. Hoje foi dia de lembrar os amigos, o que é exactamente o contrário da “boutade” do Woody Allen quando referiu que: “mais do que continuar a viver no coração das pessoas, gostaria de continuar a viver no meu apartamento.” 
Eu, pelo contrário, estou farto do apartamento. Algum coração por aí?