Diário de um recolhimento 11

05/04/2020

Islândia. Era onde eu devia estar hoje, a percorrer os fiordes, espreitar a aurora boreal, quedas de água e glaciares. Seria - vai ser - uma boa viagem, com a família e amigos em todo-o-terreno percorrendo a lua se esta tivesse água. Estive duas vezes em Reykjavik para jogar (uma pelo Porto e outra pela selecção) e não conheci mais que o hotel, o pavilhão e a loucura da noite escandinava com as suas bebedeiras de vikings gigantes que duravam toda a noite até ser noite novamente de manhã. Não sei se o coronavirus aguentaria isto. Para o ano há mais - espero.
Umas coisas levam às outras como raízes ou conexões neuronais. Ao pequeno-almoço ouço “Cotidiano 2” pelo Toquinho. Fomos vê-lo o ano passado, grande contador de histórias (repito aqui o post). A letra da música: “Hay dias que no sé lo que me passa:/Eu abro o meu Neruda e apago o sol/Misturo poesia com cachaça/e acabo discutindo futebol.” Daqui falta o Neruda e a cachaça. Como é de manhã pego no poeta e leio: “No tienes más recuerdo que tu vida.” E a música continua: “Acordo de manhã, pão com manteiga/e muito, muito sangue no jornal/aí a criançada toda chega/e eu chego a achar Herodes natural.” Pois.
Vou guardar o Neruda na estante. À sua frente dentes de tubarão de Seattle, outra grande viagem do ano passado. Viagens, viagens. Hoje vou rever “O Carteiro de Pablo Neruda”, o filme de Michael Radford baseado no livro de António Skármeta, de que gostei tanto. Outro dia revi o “Cinema Paraíso” e voltei a chorar no fim. “Sabes como ele chama à mulher? AMOR!” “A sério?” “É poeta. Dá para ver de imediato.” A cena dos matrecos tão sensual. “E que metáforas te fez ele?” Tudo isto com o grande Massimo Troisi que morreu doze horas após terminarem as gravações do filme.
À esquerda de Neruda aparece o Miguel-Manso que abro: “cantando o lado labiríntico dos dias”, agora menos labirínticos mas com muitas interacções, as raízes, as teias das aranhas, o tricotar da lã, os vasos sanguíneos, os mapas das cidades, dos países, do universo. Está tudo ligado. Mais à frente: “Cada criança vertida sobre o sono frequenta/em calado tumulto uma aula de magia.” Adoro ver os meus filhos dormir, sei que estão cheios de magia dentro, às vezes até demais: o Miguelinho deu-lhe para se despir e andar nu pela casa. Um pequenino deus Pã, um faunozinho.
Dia de ramos, os meus filhos atarefadíssimos com desenhos para madrinhas e padrinhos. Godfather, boa lembrança. Já falei com a Alice, a minha madrinha. Tudo isto tem o seu valor, convoca a comunicação. Eu, como pouco místico que sou, gosto de falar com aqueles que gosto, nada tem a ver com lei ou religião, é mesmo amor. “Os deuses actuam/como se não existissem, e assim/não existem, de facto, com extrema eficácia.” É o que apetece pensar face a tudo isto: 295 mortos em Portugal. O texto é do Gonçalo M. Tavares que também faz um diário: 
“O diário da peste” no Expresso: ontem com os drones a dominarem o mundo. “E mesmo o passado tem coisas/que ainda amanhã serão surpreendentes.” Por exemplo, continuei com o Hawking e descobri que fizeram as experiências de Galileo na lua (o astronauta David R. Scott), ou seja, sem ar a interferir. E a pena caiu ao mesmo tempo que o chumbo. O que não podia ser provado, como se diz, da belíssima torre inclinada de Pisa. Portanto: o passado no futuro. Ouço Scott e vou buscar o Fitzgerald, amigo do Hemingway, o que me faz pensar noutro filme para ver: “Meia Noite em Paris” do Woody Allen.
Então o Scott Fitzgerald com “Morreria Por Ti e Outras Histórias Esquecidas”, só o título e não era preciso mais nada. Mas abro... “E, embora as rosas não tardassem a despedir-se até ao ano seguinte, parecia provável que aqueles dois durassem até à eternidade.” Finais felizes? Nada que lhe tenha acontecido, talvez a uns poucos felizardos. Não vai tudo ficar bem se aqui não estivermos para ver.
Para acabar mais G. M. Tavares: “Seríamos animais se não existissem certas canções.” E por isso ainda Toquinho: “Aí pergunto a deus: escute amigo,/Se foi para desfazer porque é que fez?”
Então junto Toquinho, Neruda, Troisi, Gonçalo e Fitzgerald e vamos para a noite em Reykjavic apanhar uma ramada monumental para nos esquecermos disto. Sou capaz de levar uns amigos para ajudarem à festa. Afinal, os Vikings podem ser perigosos, principalmente quando se mistura poesia com cachaça e se discute futebol. O mais certo é sairmos de um bar qualquer a meio da noite, abraçados uns aos outros, alguns a chorar, outros cheios de metáforas, no labirinto mais labiríntico da cidade, felizes para sempre até à manhã seguinte de ressaca. Até ser noite novamente de manhã.




Toquinho:
https://open.spotify.com/track/3fdnM2xVSw2HMAtsM0vDJB?si=DcQpa43vQW6caPtwmQYlgw