Diário de um recolhimento 13

07/04/2020

Manhã ainda mais matinal, de carro para trabalhar em Guimarães, ouço rádio que é algo que não faço em casa. Tenho pena do homem que relata os problemas de trânsito, estão a desencantar todos os acidentes do país: em Ferreira do Alentejo uma furgoneta está avariada na berma da estrada, cuidado ao passar no local. Gosto da palavra furgoneta. Hoje Billie Holiday faria anos, morreu com 44. Deixou um legado eterno, e nós para aqui a perder tempo. Ouço “April in Paris”, o mês e a cidade certas, também gosto das versões do Charlie Parker - que por sua vez morreu aos 34. Dá que pensar.
“Paris é uma Festa”, em Abril ainda mais, com a notável excepção do ano que vai passando. Em Paris, sem dinheiro como o Hemingway, eu e a Bet há uns anos, num hotel com o estuque (gosto da palavra estuque) à mostra, passámos a noite do meu aniversário, vestidos a preceito no bar do Ritz - com o nome do escritor - a beber Papa dobles, tratados como príncipes, como só se pode ser em locais com muita classe, sem o snobismo de alguns locais da nossa praça. “Snobe? Só o suficiente para com snobes/se mostrar snobe; ou, se necessário,/mais snobe que os próprios snobes.” Já dizia o grande David. 
Voltámos para o nosso hotel felizes como duas crianças a correr nos charcos. Abro “A Moveable Feast” do Papa: “Uma rapariga entrou no café e foi sentar-se a uma mesa perto da janela. Era muito bonita. Possuía um rosto fresco como uma moeda acabada de cunhar - se acaso fosse possível cunhar moeda em carne macia e húmida da chuva.” Onde é que eu ía? Billie Holiday, Charlie Parker. Depois passaram Júlio Resende, um pianista algarvio com nome de pintor, com uma versão de “Foi Deus” de que gostei bastante. A seguir ouvi as versões da Amália - a original - e do Zambujo e gostei de todas. Gosto da palavra Amália.
Quase não se veem carros na rua, auto-estrada deserta. Não fosse aquele problema em Ferreira do Alentejo e o país às moscas. Nas notícias os mortos em Portugal subiram para 345, no Brasil não se sabe bem o que se passa, a não ser a imbecilidade do presidente, mas contabilizam mais de 500 mortes com epicentro em São Paulo. Gosto tanto do Brasil. Ouço “Sampa” do Caetano em homenagem e quando chegar a casa vou abrir “Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para o autor de Sampa” da Alexandra Lucas Coelho: “pequeno é nos fazermos pequenos” diz ela. Axé e um abraço para os dois. Gosto da palavra abraço.
No hospital medidas de segurança reforçadas, entro no consultório e vejo os dois contentores: “Resíduos Comuns” e “Risco Biológico” e rio-me. Já não existem resíduos comuns! Nós próprios somos um risco biológico, como já era de prever quando “Um dia, Deus debruçou-se demasiado sobre um bocado de barro e caiu para dentro do Homem” como disse o Afonso Cruz. Já repeti Deus neste dia. “Não negue à partida uma ciência que não conhece”, uma frase sábia que saiu de um anúncio de tarot. Continuo místico, não liguem. Antes “risco biológico” do que “resíduo comum”. 
Já em casa, por entre choro, gritos e gargalhadas dos miúdos, lá consigo ler em rodapé no telejornal “Governo quer evitar ricos de contágio”. Ricos de contágio não seria nada mau nesta altura. No meio da loucura que se partilha nas redes sociais, recebo do Manel Zé um vídeo do grande Satchmo a explicar porque é que considera o mundo maravilhoso, se vivemos rodeados por guerra, poluição, fome e agora vírus. Responde que não é o mundo que é mau, é o que nós fazemos dele. “Love, baby, love! That´s the secret.” e começa “I se trees of green and red roses too” e não quero ouvir mais versão nenhuma.
E o Agostinho mandou: “o problema não é o esquecimento mas o aquietamento” do Amos Oz. Como não o tenho vou buscar Philip Roth pela afinidade judaica: “não existe um modo simples de se ser grande.” Pois não se considerarmos a verdadeira grandeza. Reparo que escolhi três livros amarelos, os meus filhos de amarelo, o cérebro, essa máquina estranha. Vou buscar outro amarelo. Cortázar: “Louis (Armstrong), que avança através do palco, e acabou-se o mundo e aquilo que vier agora é total e definitivamente a queda da cristaleira.” Redondo. Dará para um poema? Cristaleira, furgoneta, estuque, abraço, Amália?



Billie Holiday:

Charlie Parker:

Júlio Resende:

Amália:

António Zambujo:

Caetano Veloso:

Louis Armstrong: