Diário de um recolhimento 14
08/04/2020
Sinto-me como um barco em doca seca, não estou avariado, não tenho buracos, a pintura está bem (ok, mais ou menos), mas não tenho préstimo. Olho o Porto na neblina do nascer do sol e penso na cidade também adormecida, à espera de melhores dias, dos abraços, dos beijos a encherem as ruas, da festa e dos insultos. Este ano nem o São João nos vale. Como será o recomeço? Imagino um padre ou um ministro (tudo menos a DGS) nas colunas de som por esse país fora, as mesmas das pastosas músicas de Natal, com voz autoritária e eclesiástica: “Pode beijar a noiva!” E saímos para a rua como se de um sismo se tratasse.
Não sou uma pessoa vingativa, nem gosto de dizer mal de ninguém. A não ser em casos extremos em que devemos ser intolerantes com os intolerantes - um pouco como os snobes -, mas este governo da Holanda, sem ser um caso extremo, é um pouco irritante. Temos os imbecis e depois temos os irritantes. Estes ainda não passaram à categoria de imbecis, mas estão por um pelinho. E pensar que Amsterdão está naquela canção do Brel, que por sinal faria anos hoje. Parabéns, querido Jacques, parabéns. O homem de dentes grandes e braços compridos como um espantalho.
A voz que cuspia as palavras como se fossem martelos e agarrava tudo até ao fim da música como se disso dependesse a sua vida.
“Dans le port d`Amsterdam/Y a des Marins qui chantent”. E a partir dali tudo era crescendo: marinheiros que dormiam em terra e sonhavam com as putas que os acolhiam, e bebiam e morriam e renasciam para comerem e cantarem juntos, com arrotos estupendos e mijadelas monumentais e nunca mais seriam felizes a não ser a navegar ou a morrer no mar.
Cá 380 mortos. Muitos morrem sozinhos, a maior parte sem direito a despedida. É uma doença desumanizante esta. Li um lamento de uma amiga enfermeira da linha da frente que se podia intitular “Vocês não sabem...” E não sabem mesmo. Se tudo era mau antes, imagine-se agora. Desejei coragem, não há mais nada a desejar. Como li um dia Saul Bellow dizer numa entrevista: “Não estou de modo nenhum disponível para deixar de ter esperança. Talvez haja certas verdades no universo que, afinal, sejam nossas amigas.”
Nada da treta: “a esperança é a última a morrer”, não, o que interessa é ter a coragem de alimentar a esperança quando toda a gente à volta parece tê-la perdido. Essas pessoas é que são os verdadeiros heróis. Aqueles que permanecem quando tudo se esvai, os que fazem bem o seu trabalho. Uma vez o Lobo Antunes disse: “uma pessoa que está a fazer bem uma coisa fica bonita, ficamos a olhar...” É mesmo assim: um sapateiro, um pedreiro, um marceneiro, um enfermeiro. Nesta altura é o que se deseja: um trabalho bem feito.
E é preciso ter cuidado com os medíocres. Esses aproveitam as crises para tentarem subir. A estupidez humana (pleonasmo?) pode ser maior do que a muralha da China. É sabido que ambas podem ser avistadas do espaço, juntamente com as estufas de Almeria e as pirâmides de Gizé. As pragas do Egipto. Não, o vírus não é uma praga, já a estupidez...
Hoje estou amargo como uma boca de ressaca. Já dizia o Afonso Cruz “Somos amargos quando nos falta inteligência para ter humor.” Não era amargos, era sérios, mas não importa.
A propósito deste diário, recebo uma mensagem de um antigo adversário andebolístico e agora companheiro de trabalho: “Estás a tentar vender os teus livros?” “Não são para vender!” Repliquei. “Vendias mais depressa a alma do que os teus livros.” Fausto! Fui logo à estante. Não encontrei o do Goethe. Não percebo, terei vendido? Encontrei o do Thomas Mann: “Talvez o Mal não fosse mau, se não houvesse o Bem.”
Não concordo. Desculpem, mas cheira a desculpa esfarrapada.
Enquanto espero pela voz pastosa nas colunas de som, vou sair da doca seca e tentar a sorte no mar. Coloco Brel nos auscultadores “Moi, je t’offrirei/Des perles de pluie/Venues de pays où il ne pleut pas”. Países onde não choram, só se forem países muito baixos.
Nada de vender livros ou alma. O diabo que espere, somos mortais.
Em Hong Kong, no zoo, por haver finalmente privacidade, dois pandas acasalam.
Haja fé.
Jacques Brel: