Diário de um recolhimento 15

09/04/2020

Recebi muitas mensagens boas de pessoas que considero boas e às quais agradeço. Duas com músicas do Brel: Iggy Pop a cantar “Ne me quittes pas” e David Bowie a cantar “Amsterdam”. Um deslumbramento. Não sei porquê, fizeram-me lembrar o Leonard Cohen, que também ouvi de seguida a cantar “Dance me to your beauty with a burning violin/Dance me through the panic till I ´m gathered safely in”. A dança para ultrapassar o medo.
Nietzsche terá dito (as fotografias que tenho dele não o fariam prever) “Consideremos perdido aquele dia ao longo do qual não dançámos, pelo menos uma vez.” No que me diz respeito, já perdi muitos. Mas recuperei alguns quando pude dançar como se deve dançar, com o corpo e o espírito libertos de amarras, como um índio, um xamã, um bêbado enlouquecido, Jim Morrison. Dançar liberta. Quando chegarem a casa cansados, dancem. Vão ver.
A Betânia ainda não leu o que escrevi ontem, mas chegou a casa com uma notícia maravilhosa: “dei o nosso nome como voluntários para o hospital de campanha no pavilhão Rosa Mota.” Sem o saber, deu um pontapé numa das traves que seguravam o barco na doca seca. Se tudo correr bem não vamos ser necessários, mas aqui estamos. Recorro o Ruy Belo, desta vez não à sorte: “Tu és maior que esta alegria de haver rios.” Entretanto já morreram 409 pessoas em Portugal. “O vento não percebe que morreu gente” disse o Pedro Mexia. E tem razão.
Respondi a um texto muito bom porque muito sincero e despido de artifícios da Teresa Coutinho no Instagram a propósito da angústia com uma frase do Ian McEwan: “Sentir-nos-emos sempre angustiados pela maneira como as coisas são - é o que decorre da difícil dádiva da consciência.” Mas depois disto tudo passar, a angústia não irá embora. Arranjará sempre outros caminhos. Na rua vamos sempre cruzar-nos com os que nos sorriem e com os outros, sempre apressados para o dinheiro, para o lucro, sem sorrisos, com a pressa dos toxicodependentes para não chegarem a lugar nenhum.
Algo que nos tira a angústia é a nossa inconsciência da mortalidade. Vivemos como deuses, nunca vamos morrer. Nestes dias isso alterou-se, voltámos a ser mortais e todos os dias somos recordados disso, como se tivéssemos um grilo falante ao ombro: “Vais morrer, vais morrer”, como na Roma antiga, quando um imperador desfilava num Triunfo, um escravo era transportado na quadriga e sussurrava-lhe: “És mortal! És mortal!” Enquanto segurava a coroa de louros a uns centímetros da cabeça de César. Quando nos pensamos no centro do mundo, estamos em local incerto, despido de gente.
Nem me lembro da Páscoa. O que mais recordo é a casa da minha tia Mariazinha cheia de roscas de pão-de-ló. Havia pão-de-ló no quarto de hóspedes, na sala, na cozinha, na biblioteca, até na casa-de-banho. Era ela que os fazia e embrulhava em papel e no fim deixava que eu lambesse o salazar (salvo seja). Nunca mais comi pão-de-ló igual. A minha tia Mariazinha está num lar da Santa Casa. É um dos alvos preferidos da besta. Tenho a certeza que se ela pensar no pão-de-ló, a doença não lhe pega. É uma espécie de magia do sistema imunitário.
Quando as pessoas se enchem de magia, o seu sistema imunitário fica fortalecido. Está provado, veio no New England Journal of Medicine. A magia é tão importante na nossa vida como a Poesia, dizem que não servem para nada, mas o Gabriel Garcia Marquez, que é um rapaz que sabe umas coisas, referiu isso no seu discurso do Nobel, citando o poeta Luis Cardoza y Aragón: “a única prova concreta da existência do homem: a poesia.” E a magia promete “restituir a integridade de uma coisa feita em pedaços.” É absolutamente necessário acreditar nas duas.
Mandaram-me também um artigo do Harari sobre a pandemia, um homem que se dedica a combater a imbecilidade: “A coerência é apanágio das mentes obtusas.” 
Fim do dia, vamos fazer o jantar ao som de Leonard Cohen, vamos dançar como Jim Morrison após a mescalina “Riders on the Storm”, sim, é o que somos. Depois do jantar pão-de-ló. Desta vez não da tia Mariazinha, mas bolinhol de Vizela. Vamos encher-nos de dança, magia e Poesia até o nosso sistema imunitário ficar empanturrado de sol. Hoje à noite somos imortais. Pelo menos até de manhã.