Diário de um recolhimento 17

11/04/2020

Despertador para as 7h, despertador destruído às 07:01h, lapso de tempo em que tacteei a procurá-lo com queda de livro e caneta e derrube de garrafa de água. Adormeci outra vez. Dormir dá para passar o tempo. Quando acordei de vez olhei para o ecrã do telemóvel e li sobre valas comuns em Nova Iorque. Afinal não foi tudo um pesadelo, a realidade é pior que os pesadelos. A nossa Nova Iorque, como é possível? Ao caminhar em direcção à sala passo pela fotografia de Henri Cartier-Bresson que trouxemos do MoMa quando lá fomos em 2010, já com as torres destruídas, e forço um sorriso.
É uma cidade preparada para grandes desastres, com um corpo de bombeiros e policial exemplares, uma cidade com crime, mas também com nichos de tranquilidade e onde sentimos - como na canção - que tudo pode acontecer. Tudo menos isto: um assassino silencioso e invisível. Valas comuns lembram guerras civis em África, o holocausto, a Primeira Grande Guerra. Como é possível isto? Como escrever a história dos acontecimentos improváveis? Paul Auster, um nova-iorquino, gosta de pedaços inexplicáveis da realidade, como as coincidências. Numa entrevista, o escritor refere que “o acaso é uma parte da realidade: somos constantemente moldados pelas forças da coincidência, o inesperado acontece na vida de todos nós.” Como agora sem dúvida, o inesperado, a doença que ataca sem avisar, uma lotaria. Mas não devemos esquecer todas as outras doenças, também terríveis e inesperadas, a não ser aquelas que têm uma grande dose de culpa do portador, como quando fumo um charuto e o acendo com o meu isqueiro comprado pela Betânia numa loja em Nova Iorque.
Hoje vou rever “Manhattan”, a sua fotografia extraordinária, um hino à cidade das valas comuns. Abro à sorte um livro do Woody Allen: “- Deus está em silêncio - gostava de dizer. - Se ao menos conseguíssemos que o Homem se calasse...” Isto dito por um que nunca se cala! Mas nem sempre o silêncio é de ouro. Lembro-me de estarmos deitados na relva no Central Park, num dia de Verão, com o rumor das árvores e a tua cabeça no meu peito e ao longe um saxofone numa espécie de banda sonora daquele momento. Eu disse: “Deve ser um festival de jazz.” Mais tarde deixei cinco dólares no chapéu do saxofonista.
Saio de Nova Iorque e volto a casa onde todos acordam. Nestes dias não posso atravessar as pontes para o Porto, os vírus também usam as pontes, nós somos as pontes da doença, ou o trampolim, ou o seu transporte. Ferraris que levam coroas dentro - no meu caso talvez um Peugeot. Por saber que não posso, mais quero ir, é sempre assim. O fruto proibido e tal... Começo então a ler “A Luz de Pequim” do Francisco José Viegas, com o seu Jaime Ramos e o Porto ao fundo. Gosto muito de policiais, romance negro, Rubem Fonseca e o nova-iorquino Spillane:”Há dias que pairam sobre Manhattan como uma tenaz invisível.”
Continuo a não gostar do lema “Vamos todos ficar bem”. O que dizer dos mais de 100000 mortos em todo o mundo, das suas famílias? O que dizer das sequelas pulmonares de outros tantos? Sei que se trata de uma mensagem de encorajamento, mas então porque não “Vamos ter coragem” ou “Vamos ajudar quem precisa”. Parece-me uma mensagem egoísta. Deixo alguns títulos de livros com mais sentido: “Amanhã na batalha pensa em mim” do Marías; “O amor nos tempos de cólera” e “Viver para contá-la” do Gabo e o melhor “Como é linda a puta da vida” do MEC.
Volto a Nova Iorque para dizer que sim, existem muitos seres irritantes nos EUA, mas como refere Behan no seu livro sobre a Big Apple: “Depende se estão a referir-se a Roosevelt ou Al Capone”. Ía falar mal de um casal que ontem, no telejornal, pediu apoio ao estado porque não conseguem trabalhar de casa porque o filho chora, mas não o vou fazer. Apoiei o abaixo assinado para ajudar os agentes culturais e pessoas que ficaram sem emprego. É necessário seleccionar quem precisa, há sempre quem se queira aproveitar em situações de crise. 
O Agostinho enviou-me do Kipling: “Se és capaz de conservar o teu bom senso e a calma,/quando os outros os perdem, e te acusam disso,/se és capaz de confiar em ti, quando de ti duvidam/e, no entanto, perdoares que duvidem,/se és capaz de esperar sem perderes a esperança/e não caluniares os que te caluniam,/se és capaz de sonhar sem que o sonho te domine,/e pensar, sem reduzir o pensamento a vício,/.../se és capaz de falar ao povo e ficar digno/ou de passear com reis conservando-te o mesmo,/.../se assim fores, meu filho, a Terra será tua/será teu tudo o que nela existe...” E pronto.