Diário de um recolhimento 20
14/04/2020
Hoje começou a “escola”. A Inês já com as fichas de trabalho, quando me pede para corrigir diz: “Não carregues nos males, papá!” Para depois poder apagar. Mas quando a ouvi dizer isto a primeira vez pensei, é mesmo o que se quer, que não se carregue nos males. Não é fácil nesta altura, na verdade não é fácil em nenhuma altura, mas agora podemos, relativizando o que se passou até há três meses atrás. Carregar nos males não é o mesmo que carregar os males. A segunda opção pode ser estóica, a primeira, não. A primeira é calimerice.
De manhã saio cedo para Guimarães, trabalho o dia todo. Nada voltou ainda à normalidade, mas é bom ter a sensação de ir para o trabalho. Ouço a lista de Clássicos de Rock, a que o André chama de jurássicos de rock. “Stairway to Heaven” é melhor não, “If I Can Dream” talvez, “Highway to Hell” espero que ainda não, “Should I Stay or Should I Go” stay!!, “We Can Work It Out” sem dúvida, “All You Need is Love”.
À frente, o letreiro electrónico: “Animal na via a 3 km”. Sempre que isto acontece imagino uma zebra ou uma girafa fugidas do Zoo, por vezes penso que o letreiro devia referir: “Cuidado! Animais na via!” E à frente meia dúzia de condutores aos gritos uns com os outros. Mas o que geralmente acontece - felizmente - como hoje, é não ver nada. O que me faz pensar em carreiros de formigas, ou uma osga a esgueirar-se, depois de ter sido confundida com um lagarto gigante pelas câmaras de aumento dos controlos rodoviários.
No rádio continua o jurássico: “Hotel Califórnia”. A música é como a literatura, como toda a arte, uma forma de mobilizar recordações, é um meio de transporte, mas não a motor, é uma bicicleta ou um balão, tranquila como uma brisa, como os ramos de um salgueiro. Esta música leva-me ao Algarve nos anos loucos, quando jogávamos bilhar no bar Calypso, um dos melhores em que já estive, e já estive em muitos. O bilhar era enorme e difícil de acabar, as bebidas pequenas e rápidas, as miúdas fugidias como sempre. Calypso era também a ninfa que raptou Ulisses, o barco de Cousteau.
Gosto de exploradores, quando chegar a casa procuro o livro do Jacques-Yves, o homem que melhorou os equipamentos de mergulho, o primeiro a mostrar o mar da parte de dentro, a parte barriguda, cheia de seres vivos estonteantes. Recebeu todas as condecorações imagináveis de vários países, concebeu o compromisso da humanidade com o ambiente, inventou submarinos, procurou a Atlântida, recebeu Gracia Patricia (Grace Kelly) no barco, encontrou tesouros naufragados, mas, mais importante, levou-me com ele. “Eu sou o mar. E o mar está em mim”
Mesmo ao lado de Cousteau, talvez não por acaso, está um livro com outro explorador que me levou com ele: David Attenborough e as suas expedições zoológicas. Onde, entre outras coisas, se desvenda o segredo de como dormir numa rede (vão ter de ler), do Bush Flying perigosíssimo, dos curandeiros e dos seus enguiços, do fascínio das preguiças e dos tatus, espíritos de mortos, vampiros, como apanhar uma pitão sem meios, como limar os dentes, krakatoa, borboletas a comerem carne, e outros assombros que parecem mentira, poesia, loucura e desconforto para contar aos netos.
Ainda há tempo para olhar para a biografia do Chatwin, viajante e erudito, um livro lindíssimo, onde se revela que “Todos os escritores são carteiristas”, que existem “rachas inesperadas no mundo” e que os ricos “nunca se lembram de pagar nada”. “Tenho pressa e viajo leve”, uma das melhores biografias que li. Portugal, regresso a casa, 567 mortos, a TVI chamou-nos menos educados aos do norte, 2 milhões de infectados em todo o mundo, o ministro da saúde do Chile inclui os mortos na percentagem dos recuperados - Pablo! Porque nos abandonaste?
Continuo na lista jurássica: “Take the Long Way Home”.
Hoje morreu uma grande imunologista com a Covid 19. Foi nossa professora na faculdade: Maria de Sousa. Condecorada por três presidentes da república. O destino é irónico e cruel. A natureza não perdoa. Casamentos adiados, funerais sós, as cartas de amor valem cada vez mais. Em homenagem um poema para os que se vão indo, e também para os que ficam e tentam e lutam do Jorge de Sousa Braga: “O silêncio é como se fosse água. Daquela água pura da montanha que se bebe directamente pelo coração”. Não carreguem os males. “Let´s spend the night together”.