Diário de um recolhimento 21

15/04/2020

21 dias de recolhimento. Ontem a Betânia adormeceu enquanto lhe lia o diário. Trata-se do meu primeiro encontro com a crítica literária. Pior do que dizerem mal é compararem-nos a Morfeu. A meu (e seu) favor as vezes que adormeço com um livro na mão, que não são poucas, principalmente quando o trabalho é muito. Sinto falta desses dias. O trabalho não liberta mas valoriza, mesmo quando o dia não foi o que quisemos fazer dele. Morfeu no dicionário de mitologia: filho de Hipno, toca os mortais com uma papoila para que adormeçam. Se te apanho...
Hoje nasceu Leonardo da Vinci, faria 568 anos. Homem da renascença, pintor, escultor, engenheiro, físico, filósofo, anatomista, arquitecto. Nem sempre por esta ordem, um homem universal, o contrário dos super-especialistas de hoje. 
599 mortos no total em Portugal. Nos Estados Unidos 2200 mortos num dia, Donald Trump interrompeu o financiamento americano à OMS e quer o nome dele nos cheques de ajuda aos mais desfavorecidos. Se tivesse de inventar um imbecil, não lhe chegava aos calcanhares. Que digo eu? Nem à micose que com certeza tem, se é que os fungos lhe pegam.
Tive o descaramento de colocar no mesmo texto Leonardo e Trump. Devo sofrer as consequências, sejam elas quais forem, mereço.
Às vezes penso que estou a viver num romance do Stephen King ou do R. R. Martin. 
Acho que já disse isto antes: quem era bom continua bom, quem era mau piora. Um amigo meu ofereceu, sem dizer nada a ninguém, mais de cem máscaras para aqueles que ajudam os sem-abrigo no Porto. Um concorrente dele ofereceu máscaras aos opinion-makers do Face e do Insta, tipo jogadores de futebol, actores conhecidos ou jet-set, e assim viu a sua marca publicada nas redes. 
Por falar em sem-abrigo, esta semana vi no Instagram um livro que adoro e nunca mais peguei desde que o li: “O Segredo de Joe Gould” do Joseph Mitchell. Encontrei-o a vaguear pela sala numa gabardina suja: “nos dias mais agrestes...enfia uma camada de jornais entre a camisa e a camisola interior” e chegou a recitar um poema da sua autoria: “No inverno sou budista,/E no verão sou nudista”. Este é Joe Gould, “a maior autoridade mundial na língua das gaivotas”, grande poeta da clandestinidade, autor da “História Oral” da humanidade. Vou aconchegá-lo entre o Melville e o Montalban para não ter frio.
Eu não tenho esse problema, estou em casa. Estou aqui à espera de ser fogo e nem brasa, nem faísca. Veja-se que não pego fogo a ninguém, nem à casa, nem aos materiais mais inflamáveis. Quase que podia ser colocado num copo para refrescar uma bebida. Queria ser silêncio em vez de gritos, mais lento que rápido, menos triste, ouvir o que se passa quando não se passa nada. Como na música quando ouvimos o respirar - a música é sempre melhor ao vivo -, em que a parte importante é também a parte da espera. 
Às vezes escrevemos para não dizer nada. Às vezes é mesmo esse nada que importa. Que importa? Se puderem ouçam o Thelonious Monk. É lindo. E o Sinatra enquanto espera entre versos, quase ao limite do impossível. É agora, é agora! Não, não é. É quando lhe apetecer. São coisas que não se vêem, que nada significam na pauta, que não existem pois foram inventadas naquele momento para quem estava a ouvir ou a ler. É como Eugénio e Sophia, não se pode descrever, mexe com os nervos, estala articulações, faz-nos ferver. E eu sem brasa nem faísca.
É o silêncio outra vez, aqueles espaços entre as obras de arte verdadeiras que nos fazem parar e ficar a olhar, a ouvir, a ler e a pensar “como é possível?” Como é que este filho da mãe do Thelonious, até se ouve a sua voz em fundo, a sua respiração ofegante, como é que nos prende nos silêncios? Fazem parar o tempo. É isso. De repente deixamos de respirar e não envelhecemos. Ficamos para ali. Embevecidos. Como avós a olhar para os netos. Só que somos avós e netos ao mesmo tempo e quase morremos de amor.
21 dias de diário e ainda nada à vista. A Bet adormece e eu continuo a ler, acredito na possibilidade de influenciar os sonhos. Se Leonardo vivesse era despedido por Trump e tornava-se em Joe Gould, com o seu grande desprezo pelo mundo e pelos espertos que passam à frente e manipulam os que se distraem, os que só ouvem as palavras e não vêem os silêncios. À noite contribuo para o descanso daqueles que amo enquanto leio sem parar, sem parar, na tentativa infrutífera de estancar o tempo ou de me acender em brasa.
-Soube agora morreu o Rubem Fonseca. Amanhã a homenagem.-