Diário de um recolhimento 22
16/04/2020
629 mortos em Portugal.
Infelizmente, hoje não é difícil escrever este diário. Tenho dois temas, duas dores, duas saudades: Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda. Passei o dia a saltar entre um e outro, a ler um conto de um, uma história de outro. São muito diferentes e muito iguais como aquele lema anti-racista. Nasceram no último berço da magia que é a América do Sul, entre povos que resistem como podem ao poder dos poucos que mandam. Tenho muitos livros dos dois, alguns antigos, outros recentes, todos bons.
Não sei onde meti “O velho que lia romances de amor” com o seu barbeiro/cirurgião, como não soube onde meti a “Grande arte” que depois comprei em versão livro de bolso. Provavelmente emprestei-os, como faço quando gosto muito de algo e estou entusiasmado num jantar de amigos. Provavelmente não mos devolveram, mas não posso censurar ninguém: é difícil libertar-nos deles depois de lidos.
Nunca os conheci pessoalmente, embora sempre o achemos de quem lemos e gostamos apesar de não ser verdade. Mas vi ao longe o Rubem há uns anos no Correntes de Escritas, onde supostamente o Luis contraiu esta doença este ano.
Luís Sepúlveda, a voz dos que não têm voz. Esteve em quase todos os lugares do mundo onde os direitos humanos estavam a ser postos em causa por algozes, corporações ou governos corruptos e sofreu na pele com uma das piores ditaduras de sempre no seu próprio país, O Chile de Pablo Neruda. Quando Pinochet finalmente foi preso, Luís ofereceu-lhe “o que não tive, o que nenhuma das vítimas teve: pagar-lhe um advogado”. E assim se esbofeteia com justiça.
Rubem Fonseca, o escritor dos marginais, do que não se pode contar, dos assassinos e das prostitutas, das lutas de faca e alguidar, do horror dos serial killers, mas também de “José”, de “Agosto”, de histórias indecorosas, do romance negro. “Fui para casa, andando lentamente, e pensando, sou um covarde de merda, covarde de merda, covarde de merda. Demorei mais de uma hora para chegar em casa, creio que andava como os covardes andam, devagar, covarde anda devagar ou anda correndo. Eu era covarde e andava devagar.”
Luís, um antropólogo da humanidade, das tribos e pequenos povos que resistem. Um guardador de histórias, um coleccionador das coisas belas que o mundo tem para oferecer, mas também aquele que aponta o dedo: “A cobiça será sempre como uma agulha de gelo nas pupilas” e “sou um grande pessimista quando se trata de comover os ociosos endinheirados.” Pegou em pequenas histórias, destinadas a desaparecerem no passar tumultuoso dos dias, e deixou-as para que nós, apressados ouvintes, distraídos seres, pudéssemos ter momentos de exaltação e aventura.
Rubem, o homem que parece ter visto tudo o que é possível ver, impossível também. Lembra-nos que todos temos cá dentro o potencial para sermos vítimas e agressores, que somos deus e o diabo juntos, uma amálgama difícil de separar porque a carne é só uma. “Ao contrário do que diz o poeta, eu não me contradigo, eu me repito. Posso ser muitos, mas sempre o mesmo. Isso pode ser discrepante, mas como diz outro escritor (como escrevinham esses sujeitos, caramba!) a gente é o que quer ser e eu quero ser um só, e sou.”
Imagino-os sentados lado a lado, com os olhos cuspindo inteligência, as bocas cheias de histórias, a beberem mate ou aguardente de cana:
L: “Quando não tiveres um sítio para chorar, lembra-te das minhas palavras e vai a casa da Mãe Antónia”; R: “Nenhuma mulher resiste quando um homem pede perdão”; L: “A verdade das pessoas simples vale mais que todas as verdades da arte”; R: “Há coisas que se você não faz, os outros fazem errado por você”; L: As feridas dos heróis da literatura são rapidamente curadas com o bálsamos da leitura”; R: “O ónus da abundância é o tédio.”
Os dois sem papas na língua. Luís num conto que leio agora - parece impossível, ainda ontem falei nisso: “nunca mais ouvirá My Favourite Things interpretado pelo quarteto de Thelonious Monk com John Coltrane no saxofone soprano.” Ficarão sem pre vivos connosco - ainda ontem a ler Eça, podia jurar que ele a meu lado. Aquele outro conto das gardénias que me fez lembrar Omara Portuondo “o teu pranto de gardénias ausentes.” Espero que estejam, como escreveu Luis: “não no céu dos padres, mas no outro, onde a vida é uma festa.”
Acabo com Brecht citado por Luis: “há homens que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.”