Diário de um recolhimento 23

17/04/2020

Hoje lembrei-me de mim em criança, em casa dos meus pais, à janela a olhar para a rua. Conseguia estar horas ali, debruçado no encosto do sofá de veludo verde escuro, com o queixo apoiado nas mãos, a ver as pessoas a passar. Não sei em que pensava, mas de facto tinha essa capacidade de ali estar a ver. Por vezes com o cortinado aberto, por vezes com ele fechado, de modo a ver e não ser visto. Passava muito tempo em casa, como agora, pois tinha uma constituição fraca, dado a crises de asma e até hepatites fulminantes.
Daquela moldura via as velhas a regressarem da feira com o carrinho cheio de hortaliça e fruta, algumas paravam e pareciam olhar para mim, mas não, eram as roseiras da minha mãe e eu sempre à espera que uma tentasse arrancar as flores para matá-la de susto, coisa que, infelizmente, nunca aconteceu. Os ciganos que viviam ali na esquina e que anos mais tarde vieram a ser meus amigos de futebol e bilhar. Acabei por operar um que depois me tentou oferecer uma pistola. “Para que é que eu quero isto?” Disse-lhe. “Não és médico?” Respondeu. “E então?” “Então, este mundo está cheio de anormais.” 
Os outros miúdos na rua a brincarem, as miúdas, claro que as miúdas, não me lembro se já me arrepiavam a pele, mas com certeza sim, senão como explicar a poesia? Os tolos e os doidos da cidade que é impossível evitar e que se não são eles as cidades todas iguais. O carteiro, a pobre de pedir, pois, havia vários tipos de pobres, estando afastados da hierarquia os pobres de espírito que ainda hoje não percebo porque será deles o reino dos céus. Deve ser erro de tradução. O senhor do talho, o senhor da lavandaria - que estragava sempre uma peça de roupa -, as testemunhas de Jeová.
Mais tarde chegou o gira-discos àquela sala. E os discos dos meus pais que ouvi vezes sem conta. 33 rotações, alguns riscados, a agulha a saltar, eu à janela ou a dançar pela sala, a partir coisas. Estar em casa é uma arte e eu sempre fui bom nisso. Abba, Bee-Gees, a banda sonora do Grease - a Olivia Newton-John com aquelas calças colantes -, Sinatra, Paul Anka e, o que eu ouvi mais vezes, Paul Simon e Art Garfunkel no Central Park. Centenas de vezes e ainda agora: Mrs. Robinson (qual é o segredo?), Homeward Bound (as cidades são todas iguais), Wake Up Little Susie (quem dera), The Boxer (que eu queria ser).
Daqui vieram os livros, comecei a sentar-me no sofá e a virar costas ao que já conhecia, à monotonia. Lembro-me que olhei para as estantes e vi os livros. A colecção toda do Eça encadernada a couro vermelho. Tentei ler dois ou três e não consegui. Depois cheguei às “Prosas Bárbaras”, nas quais o Jaime Batalha Reis fala de uma noite de loucura em que batem à porta do Lourenço Malheiro: “Estamos esfomeados após muitas horas de incalculável produção romântica. Jurámos não morrer antes de produzirmos três obras de génio. Dá-nos, entretanto, dinheiro para almoçar.”
Como não ficar apaixonado? Foi o meu primeiro contacto com a noite e com a literatura que nunca mais viria a abandonar. Mais à frente, Eça fala da morte como um estado natural em que viremos a ser cometas, árvores, erva ou poeira de estrelas. A partir daí continuei pela estante e descobri uma colecção onde li “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” do Jules Verne, “As Aventuras de Huckleberry Finn” do Mark Twain e o “Moby Dick” do Melville Comecei ao contrário e depois passei para a Disney, o Maurício e os super-heróis. Tinha um “Super-Homem vs Muhammad Ali” que adorava e perdi e volto agora a ter.
Brincava sozinho, muitas vezes aos espiões, adorava James Bond e era sempre 007 contra quem me aparecesse à frente. Sim. Passava muito tempo sozinho. Ainda hoje o consigo, embora nunca o esteja. Lembro-me de uma boa frase de “From Russia With Love”: “Vinho tinto com peixe! Isso devia ter dado o alerta!” Ficar em casa para não prejudicar os nossos, para não infectar os outros. Em Portugal 657 mortos até hoje, a China faz acerto por baixo das mortes, em Espanha 585 mortes nas últimas 24 horas, começam a somar-se as queixas, algumas com razão, outras não. Isto vai acabar com a policia às bastonadas.
Entretanto a Inês disse “nós somos grandes e pequenos”. E esta é a verdade universal. Com tantos livros não me lembro de ler frases destas em criança, mas é bom ter uma janela para olhar, para vigiar as velhotas das rosas, apreciar as miúdas, dar troco aos tolos e aos pobres de espírito, aumentar o som de “Late in the Evening” para afugentar testemunhas de Jeová, ir para a noite com o Eça e voltar com um criado chamado Passepartout e quando me perguntarem o nome dizer: Finn, Huckleberry Finn e beijar a Olívia Newton-John antes de beber um vodka martini, shaken not stirred.