Diário de um recolhimento 24
18/04/2020
Abro “A Jangada de Pedra” e leio: “É bem certo que as pessoas vivem ao lado dos prodígios, mas dos prodígios não chegam a saber nem metade, e sobre a metade conhecida o mais comum é enganarem-se...” Não concordo. Considero os meus filhos um prodígio das possibilidades da natureza e aqui estão, ao meu lado. É bem certo que o sol ilumina a manhã e que andamos em cima de uma bola com terra e água e fogo no seu centro e viajamos à volta de um astro incandescente à velocidade de 110 mil quilómetros por hora sem sermos cuspidos do planeta.
Mas também a joaninha que fez casa na nossa trepadeira e que os meus filhos alimentam, o café da manhã, a minha mulher tão linda na outra ponta da mesa a trabalhar, as palavras que se seguem umas às outras a uma velocidade estonteante, as orquídeas que florescem na janela (lembrei-me daquela música com orquídeas da Etiópia), a música, os cactos, os livros, as árvores e os insectos que também somos. Não, eu estou aberto aos prodígios, e sorrio quando os sinto e estes dias são bons para estarmos atentos a tudo, nos dias de trabalho é mais difícil.
A música é “Bairro do Oriente” do Veloso e do Tê. A última vez que estive no pavilhão Rosa Mota (para mim será sempre Rosa Mota e Palácio de Cristal) foi no concerto do Rui. A próxima vai ser com os doentes Covid. Tenho um livro do Tê. Vou buscar... “Estava na presença de um desses loucos que habita a normalidade”, e o grande conto: “ Um Manjerico para Lou Reed” em que o velho Lou se vê de repente no meio da loucura da noite de São João no Porto, a levar com alhos porros e martelos na cabeça “quando se vive no olho do furacão, entra-se numa rota evanescente.” Os meus filhos de óculos à Lou Reed quando morreu.
O “Bairro do Oriente”, uma das minhas preferidas do duo maravilha leva-me às “Mil e uma Noites”: “- Ouvireis outras ainda, amanhã - respondeu Xerazade - se o sultão meu senhor tiver de novo a bondade de me prolongar a vida.” E é bom de ver que Xerazade não salvou apenas a sua vida, mas a de mais mil mulheres. Como nós ao ter cuidado uns com os outros, nem precisamos de inventar histórias todas as noites, mas se o fizermos, tanto melhor.
Hoje estamos no Oriente, nunca vou contra o que as palavras querem, Oriente seja. Alexandre o Grande, “O Jovem Persa” de Mary Renault, o segundo da biografia do maior conquistador de sempre “fiquei admirado ao ver que o seu quarto não se diferenciava muito do de um banal soldado.” É por isso que Alexandre é grande, é por isso que fundou mais de 20 Alexandrias, a maioria a leste do rio Tigre, no seu cavalo Bucéfalo. Morreu com 33 anos, dono do mundo, um pouco como Jesus, também oriental, mas dono do mundo à posteriori.
Continuo no Oriente com a Alexandra e o seu “Caderno Afegão” com as suas pugilistas de Cabul, terra de “pedras, buracos e arame farpado... o rio podre”, como comer mangas, a grande personagem que foi Babur, contemporâneo dos nossos navegadores e grande epicurista. A história da explosão dos minaretes pelos ingleses - ainda falam nos Talibãs. A história de Kandahar: Alexandria é Iskandaria que deu Kandahar. Alexandre e Alexandra. É isto.
687 mortos até hoje em Portugal, mais de 150 mil mortos em todo o mundo, aulas online estão a ser pirateadas. Lá está, os piores a aproveitarem. Mas também há gente boa, a ajudar: nos lares, na rua, nos que estão abandonados em casa.
Ali na estante, em pé, virado para mim, no espaço reservado aos livros mágicos, “Jalam Jalam” do Afonso Cruz, também uma viagem ao Oriente: “Nascemos incompletos, inacabados. Somos uma promessa.”
Na Colóquio Letras dedicada ao Nobel de Saramago encontro o plano para “A Jangada de Pedra”, a nossa Península Ibérica a separar-se da Europa, que parece ser o que a Europa faz a todo o momento quando uma crise aperta. Eu, que vivo no meio dos prodígios, não os reservo para mim, admiro-os, como à música que danço enquanto preparo o jantar, lembrando Lou Reed, sendo Xerazade para a Betânia se ela não adormecer, montando o Bucéfalo pela noite dentro até ao mundo infinito dos sonhos, percorrendo a terra veloz e até, quem sabe, fundar novas cidades.