Diário de um recolhimento 25
19/04/2020
Uma das formas de atacar este vírus seria talvez saber como é a sua actividade sexual. Precisará de fazer a corte, comprar flores, pagar um copo na discoteca, jantar fora, mandar piropos, ler poesia, demonstrar proezas físicas, piscar o olho, corar, ser tímido e audacioso ao mesmo tempo, procurar gostos comuns, pagar, tudo ao mesmo tempo? Dizem os especialistas que não é bem um ser vivo, mas uma espécie de morto-vivo, um zombie. Quando fora do hospedeiro comporta-se com se não vivesse e não se reproduz. Portanto só tem sexo dentro de nós. Reconfortante.
Uma espécie de vampiro, ou não viesse por via indirecta dos morcegos, tem uma proteína S que lhe permite penetrar nas nossas células e uma proteína N que lhe permite camuflar-se. Parece Don Juan com a chave da casa das donzelas, invadindo-as a coberto da sua capa. O problema é que não abandona a casa a correr. Este Don Juan serve-se de toda a comida e bebida, dorme em todas as camas e no fim tem 10 mil filhos e faz a casa explodir, antes de ir para outra. Ou seja, é uma mistura de Don Juan com um terrorista, uma espécie de conde Drácula com a tendência pélvica de um coelho.
Além do mais, é extraordinariamente pequeno, tão pequeno que consegue ser visto à distância de um telescópio invertido, tão pequeno que cabe na minha despensa toda desarrumada. Tem um milésimo da largura de um cabelo de um careca. Tão pequeno como a memória, como algumas inteligências - não, não vou falar deles outra vez -, tão pequeno como o nosso planeta no universo, a pulga da pulga de uma pulga. “Às coisas mínimas a ciência acrescenta coisas grandes. Às coisas grandes a ciência acrescenta coisas pequenas.” Diz o Gonçalo e eu concordo.
Mas por pequeno que seja, o vírus dá origem a coisas grandes como a morte de pessoas queridas, a doença de grandes lutadores, sequelas para toda a vida. A culpa não é dele, é a sua natureza, nasceu para isso. Como dizem os grandes Stones, não podemos sempre ter aquilo que queremos. Mas podemos tentar. E ao tentarmos às vezes até conseguimos. Para isso temos de combater a ignorância, os néscios, os egoístas inconscientes, ou pior, os egoístas conscientes.
Como tenho saudades de abraçar, abraço os cá de casa, o que me faz pensar que os devia abraçar mais mesmo sem o microscópico intruso. “Só o amor pára o tempo (só/ele detém a voragem)”, foi o João Luís, também ele médico, que escreveu, num livro lindo com o nome “Nómada”. E sigo por estes dias acompanhado de livros, poesia, música, amor, comida e bebida. O que me faz engordar o corpo e a alma. Sou feliz por fazer parte do Sul da Europa, sou feliz por estar com os meus e eles estarem bem. Falta-me o mundo no seu eixo, a felicidade alheia. Sim, falta-me isso.
Os avós estão sós e não merecem.
Troco mensagens com o meu compadre de fortuna e desfortuna, aquele que nunca virou a cara à luta, vou para a varanda fumar um puro e beber rum. Hoje é domingo. O Hugo, como não tem rum, não ouve Compay. O meu filho mais velho corrige, lá dentro, o meu romance esfarrapado. Ouço Compay e todos os velhos cubanos que adoro como adorei Cuba, como adoro o meu país de mar, de pescadores e de peixe. Preocupa-me tudo isto, mas temos de manter um fundo de alegria, temos de tentar. Somos azuis de mar e de céu. Orgulhosamente do sul da Europa: os que a levaram ao mundo.
Leio o Miguel que também gosta de azul e Mediterrâneo, num livro que adoro “Não se Encontra o que se Procura”. Somos o berço da civilização ocidental - não nos devemos esquecer que também a há oriental -, somos descendentes dos gregos e dos romanos, mas também dos fenícios e cartagineses. Mas somos também descendentes de África, dos primeiros homens. É por isso que transmitimos as doenças uns aos outros, como podemos transmitir o amor. O ódio não se transmite, o ódio destrói.
Esta semana vou trabalhar todos os dias, amanhã vou a Vila Real. Fico contente por regressar aos poucos, com todos os cuidados, à normalidade. É preciso não esquecer que o pequenito gosta de sexo dentro de nós, que é um zombie maroto. Qual Don Juan? Don Juan somos nós! Terrorista sim, como no romance esfarrapado. Por isso continuo a abraçar os que aqui tenho e a abraçar de longe os que aqui não tenho. O ódio destrói e o amor constrói. Tenho muito orgulho naqueles que fazem da nossa espécie uma espécie de poesia. Sim. Poesia.