Diário de um recolhimento 26
20/04/2020
De manhã começa a telescola e as vídeo-aulas. Os miúdos pela casa, uns num lado, outros noutro, computadores, televisões, modems, professores que não atinam, alunos que demoram, enfim, o normal quando tudo é novo. Preocupa-me o que os professores podem fazer quando os alunos se portam mal. Já agora como portar mal em aulas online? Enviar um vírus? Um emoji? E como mandar bilhetinhos às miúdas giras da turma, como chatear o colega da frente? Como é que o professor atira o apagador à cabeça dos espertinhos? Vai haver cyber-bullying e net-kissing.
A primeira morte por coronavirus terá sido há 100 dias - para quem acreditar - em Portugal temos 735 mortes no total. Se olharmos para trás temos a Peste Negra, transmitida por pulgas de ratos que matou 50 milhões no século XIV. A varíola com 300 milhões de mortos, atingiu Ramsés II, a tuberculose com mil milhões, o tifo com 3 milhões, o sarampo com 6 milhões por ano até à vacina, a malária e o seu mosquito que mata 3 milhões por ano mas não interessa ao mundo porque é em África, a SIDA com 22 milhões de mortos desde 1981. E a famosa gripe espanhola que não é espanhola mas americana com 20 milhões.
Olhando para trás é caso para dizer: escusam de estar descansados. O vírus pode ter trazido algumas vantagens, poucas, mas precisamos de pensar positivo no meio disto tudo: a poluição diminuiu, embora o número de máscaras no mar tenha aumentado, talvez seja necessário recorrer a máscaras biodegradéveis. A gasolina desceu, mas também quem precisa dela? O trânsito desapareceu, o que é bom para quem tem de continuar a trabalhar, consequentemente com menos poluição sonora (menos buzinas e menos impropérios - leia-se caralhadas).
Os cães elegeram o corona o vírus do ano: baixou a obesidade canina e aumentou a humana. As adopções nos canis aumentaram, o que, a longo prazo, não vai trazer nada de bom. “Que esforço!/Que esforço do cavalo/para ser cão!/Que esforço do cão para ser andorinha!” E nós a querermos também voar, amigo Lorca.
As filas nos estabelecimentos e hospitais tornaram-se ordeiras, com as pessoas a guardarem espaço entre elas. Acabaram aqueles toques irritantes de quem está atrás de nós, o mau hálito, o bafo no pescoço, os enganos a passar à frente. Enfim, o calor humano no seu pior.
Por falar em mau hálito, as máscaras sempre têm vantagens, já posso comer alho às refeições, não preciso de fazer a barba todos os dias e há até quem fique melhor de máscara do que sem ela - o meu caso -, ao mesmo tempo que nos traz um pouco daquele mistério oriental nas mulheres com olhos bonitos - todos os olhos são bonitos porque todos têm luz. Ou seja, os feios menos feios e os hálitos suportáveis. Outra coisa boa foi ter conhecido a Susana que me vende vegetais e frutas do seu quintal e a dona Rosa que me vende o peixe fresco.
Na viagem até Vila Real continuei com Cuba, dando seguimento ao gran corona (sim, é gran para derrotar o pequeno) de ontem e ao Havana Club. Ouvi Ibrahim Ferrer, tão delicado e sereno com as suas açucenas e os seus boleros.
Mau dia hoje para escrever, vou ao Neruda que chamou a Lorca um “multiplicador de beleza”. Preciso de multiplicar a alegria neste dia de nuvens, nesta visão de gente com máscaras que afinal fica melhor sem máscaras, mesmo que alguém seja feio - o que não é certo - ou cheire mal da boca. Mas tem de ser e é para durar.
O Havana Club ficava em frente ao Bacardi, inimigos e companheiros, figadais, como não podia deixar de ser, um dos melhores sítios por onde passei na minha vida: Cuba e a Casa de la Música em Havana e os charutos falsos que me venderam para sobreviverem. Nunca devemos esquecer de tomar nota das maravilhas do mundo.
Como não avanço, vou ver o que escrevi há um ano, onde tenho o Miguel Ángel Arcas a salvar este diário, numa entrevista na casa-museu de Lorca (lá está): “El pesimismo no tiene futuro.”
Abro a “Poesia Espanhola de Agora” e leio num poema: “Passou a idade de eu ser poeta”. É como me sinto hoje, embora saiba que tenho tudo dentro de mim, nada sai. O pessimismo não tem futuro quando vemos o esforço dos miúdos para voltarem à normalidade num mundo sem normalidade. É tudo tão estranho isto: a tecnologia tão determinante como o peixe fresco e a fruta acabada de colher. A poluição diminuiu, os cães estão magros e nós gordos, as máscaras permitem o sorriso dos olhos, Lorca, Cuba, os boleros e Neruda a acabar o dia: “Se pudesse comeria toda a terra e beberia todo o mar.”