Diário de um recolhimento 27

21/04/2020

O Agostinho enviou-me uma gravação dele de um poema de quando eu escrevia poemas e me esquecia de cortar nos adjectivos. Respondi: “melhor dito que escrito.”
Mas há um verso que quer ser verdade e por vezes o é: “Todos os mitos nasceram da ignorância.” Mas nem sempre, meu caro (quando começamos a falar de nós para nós e, pior ainda, a escrevê-lo, podemos esperar pelos antipsicóticos), os mitos podem nascer do amor, da coragem, de um feito notável, de uma traição. Os mitos são histórias que evoluem, narrativas vivas e muitas vezes orais. Nós não transmitimos apenas vírus, transmitimos também mitos.
Hoje, quando acordei, uma associação de ideias trouxe-me de volta o meu avô Jerónimo. O José Gomes, que costuma responder a estes desabafos diários e ao qual agradeço, deixou uma mensagem no Instagram com referência ao seu avô materno (como o meu), e ao alho que as máscaras permitem agora comer. Dizia o avô do José, infelizmente sem resultados práticos, que o alho aumenta a longevidade. Comia-os à dentada. Logo a seguir no excelente opoemaensinaacair da Raquel Marinho, o Hélder Moura Pereira assim: 
“...a antiga fábrica/onde o meu avô trabalhou...sinceramente não tenho bem/a certeza de ser eu que estou aqui./Mas o meu avô estava lá de certeza.” É mesmo isto, com fábrica e tudo. Portanto, os mitos, o amor, o avô. O meu avô Jerónimo. Mas não basta ter um nome propenso ao mito, é preciso vivê-lo e renová-lo todos os dias. O meu avô chamava “Riquinho” a toda a gente, o meu pai que não é filho dele chama “Passarinho” a toda a gente. Eu, desgraçadamente, chamo os outros pelo nome. Não entro assim no mito, tenho-o todo cá dentro e ficam todos a pensar que sou uma pessoa sã e prática o que pode muito bem não ser verdade.
O Eduardo Lourenço disse uma vez: "Eu passo o tempo a delirar, mas só deliro para dentro porque se delirar para fora internam-me". E é mesmo assim. 
Também me perguntaram porque não Vergílio Ferreira. Sim, de facto, porque não. Aqui em casa só tenho o “Pensar” e o póstumo “Cartas a Sandra”. Vou buscar... “Morrer por preguiça de viver - nunca o pensaste?” E de facto, em certos períodos da minha vida. Mas não neste, curiosamente, não neste. Todos nós temos pensamentos que nos arrebataram e já não o fazem. 
Vergílio Ferreira foi um escritor da minha juventude e não sei quando comecei a deixá-lo para trás. 
Não quero crer, mas pode muito bem ter sido, por um episódio que descreveu no seu diário “Conta Corrente” em que todos os dias se aborrece com a Sophia de Mello Breyner, numa viagem de escritores à Grécia, pelos atrasos constantes da poeta. Quase todas as paixões são irracionais.
A minha por Sophia tem parte racional e irracional e é impossível quebrar. Na Grécia, em sua própria casa, como podia não chegar sempre atrasada? Desculpe Vergílio, mas temo que assim tenha sido: a parte irracional prevaleceu e trouxe a Sophia toda aqui para casa. 
“E uma luz cor de amora no poente se espalha/É o sangue dos deuses imortal e secreto/Que se une ao nosso sangue e com ele batalha.”
Volto a Portugal com as suas 762 mortes no total até hoje. Os melhores guarda-redes são aqueles que não fazem parecer difícil uma defesa fácil e os que fazem parecer fácil uma defesa difícil. Quero com isto dizer que nos portámos bem com isto da doença, sim nós, os portugueses em geral, e que tornámos aparentemente fácil algo que é extraordinariamente difícil. Mas é melhor continuar, como aquela música do Palma. “Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar.”
Tenho aqui uma biografia dele, o Sérgio Godinho conta que entrou por acaso numa carruagem do metro em Paris e lá estava o Palma a cantar cenas inglesas. Quando o viu, do outro lado da carruagem, parou o que estava a cantar e começou “A Noite Passada”. Até fico arrepiado. Dizem que as pessoas passavam pelas estações de saída e continuavam para o ouvir cantar. Grande Jorge! 
Quando peguei no livro, veio o “Life” do Keith Richards. Não digo que não e permito, porque quem manda nisto sou eu, ou o meu inconsciente, ou o que quer que seja - queria tanto acabar com os ques. 
“À falta de garina dormes com a guitarra, tem a forma certa.” É isso Keith, mulheres e violinos, mistura explosiva. Tenho um verso do Musa, mas fica para outro dia. Para já, fiquem sabendo que transmitimos mitos e não vírus. Transmitimos descendência, porque venho dos riquinhos e passarinhos e vou para outros que aí vêm. Desculpa Vergílio a minha paixão pela Sophia, mas o irracional por vezes vence. Hoje o diário confuso acaba com o Palma: “Tira a mão do queixo, não penses mais nisso.” E com o Keith: “Angie, Angie!/When will those dark clouds all disappear?” Amanhã.