Diário de um recolhimento 28

22/04/2020

Hoje a trabalhar, o que pode afastar a poesia, ainda mais a inspiração, mas há que dar a volta ao texto, que é como quem diz ao bilhar grande ou uma volta sem volta, como os que vão comprar cigarros. Então começo ao contrário, escolho os livros primeiro e depois arranjo forma de os encaixar. Não de os encaixotar, o que também há-de estar para breve. Vejo ali, na estante de baixo, “O Século de Sartre” do grande Bernard-Henry Lévy. Ter um hífen no nome é meio caminho andado, mas ainda falta outro tanto, e eu gosto muito do David que não depende do hífen.
A citação de Topfer “aquele que não é célebre aos vinte e oito anos deve renunciar à glória para sempre”. E a glória para quê? A celebridade para quê? Ah! Efémera vaidade, não vêm daí os diários? E continua Sartre “a verdade é que levamos muito tempo para nos tornarmos jovens.” Já o fui e para lá caminho. Pode não parecer, momentos de desânimo e incerteza, nada vale a pena, raios partam tudo isto! Mas logo a seguir um sorriso, o sol, a poesia.
Abro as “Poesias Completas” do O`Neill, poeta que admiro. Na verdade admiro todos, até aqueles com quem não simpatizo. Como separador o anúncio de um Sarau Músico-Literário em Espinho num já falecido teatro, no qual participei há vinte anos. “Entro e saio/De mãos pálidas nos bolsos”, mais à frente o “Inventário” ao qual dei seguimento (outro separador do livro). “Amigo é a solidão derrotada”, mesmo em confinamento. “Mas em todo o caso acerta/Nem que seja a um verso por ano...” porque, como nós todos “ensaboou a sua cara de todas as manhãs.”
E continuo sem achar nada que se complete, pelas estantes fora paro no escarlate. A Alexandra com “A Nossa Alegria Chegou” que diz “A morte é muito antiga mas não tanto quanto a vida”. Não há dúvida entre galinha e ovo aqui, para existir morte, a vida há-de ter pastado. E porque escrever? Esse exercício de narcisismo. Em verdade vos digo “Assim julga conhecer o mar quem o avista de terra.” Se os deuses não morrem não conhecem tudo. Podem conhecer as formas de matar, mas não se pode conhecer o mar sem lá ir.
Espanha com 20 mil mortos, nós com 785. O endeusamento dos profissionais de saúde quando há três meses uma notícia por semana em todos os meios de comunicação a deitar abaixo os médicos por algum ter errado ou porque essas notícias vendem. Volto a dizer: nem deuses, nem demónios, apenas mulheres e homens a fazerem o seu trabalho. Raymond Chandler: “Os médicos franzem o sobrolho e denotam nervosismo. Os médicos têm muito em que pensar e também se cansam. Afinal, são apenas pessoas, que nasceram para os infortúnios e para uma longa e impiedosa batalha, como todos nós."
Sigo pelas estantes fora e encontro inevitavelmente o Hemingway. De todos os possíveis, escolho o “Adeus às Armas”. Não estamos em guerra uns com os outros, a meu ver a pior situação do mundo, mas estamos em guerra contra um bicho e não podemos abandonar as armas: “Qual é a vantagem de não se ser ferido, se morremos de medo?” Mas temos de ter coragem. Pelos nossos debilitados, pelos que correm um maior risco, por todos os que fizeram tudo por nós e que agora nada esperam a não ser uma palavra, um pequeno gesto, uma memória, um sorriso. 
Desculpem, mas vou ter de colocar uma citação longa aqui, afinal ainda mando nisto que escrevo- principalmente nos dias sem inspiração - e continuo com o Papa: "Quando as pessoas defrontam o mundo com tanta coragem, o mundo só pode quebrá-las matando-as, e por isso, é claro, mata-as. O mundo quebra toda a gente, e depois muitos ficam mais fortes no lugar da fractura. Mas àqueles que não consegue quebrar, mata-os. Mata os muito bons, os muito doces, os muito corajosos, imparcialmente. Se não são desses, também vos há-de matar, mas nesse caso não será particularmente apressado."
Dizia ele também que o mundo anda três whiskies atrasado. Não sei se é verdade. Também não sei se nossos atrasámos ou adiantámos com isto tudo. Falei uma vez em bastonadas da polícia como possível futuro próximo, o Sartre dizia que o “fascínio pela violência” é “essa impaciência da liberdade” e pode ter razão se a liberdade não estiver em causa. Sabemos de antemão que “a melhor coisa do mundo...é o momento antes dessa coisa” (saravá Alexandra!) que é exactamente onde estamos. Por isso “não fiques de colher suspensa,/que a sopa arrefece.” Ufa!