Diário de um recolhimento 30
24/04/2020
Hoje é um dia especial, eu e a Bet rumamos ao Pavilhão Rosa Mota para ajudarmos no que pudermos no Hospital de Campanha do Porto. Vai ser um diário diferente para um dia diferente. É um sítio especial para mim, o Palácio de Cristal. Aqui brinquei com os meus filhos, passeei com a minha mulher, corri, andei de bicicleta, joguei pelo F. C. Porto e pela selecção nacional, assisti a concertos (James, todos os da Queima das Fitas, o recente do Rui Veloso), aqui tive as melhores “Queimas” de sempre, aqui a Feira do Livro e alguns amanheceres gloriosos - por vezes dolorosos - com o rio Douro ao fundo.
Como toda a gente é voluntária, podemos esquecer aquele ambiente de tensão, por vezes hostil, vivido nos hospitais. Somos recebidos com sorrisos, simpatia e muito profissionalismo. A Bet vai comandar a equipa, eu faço o que puder. Do centro de comando, no alto do pavilhão, vemos lá em baixo os favos cheios de luz com camas dentro. Parece um labirinto de hamsters ou um Pac-Man gigante com homens e mulheres de pijama e outros de fato espacial. Os doentes são pessoas fragilizadas, alguns perderam alguém, outros têm histórias de vida trágicas. É obrigatório respeitar.
Os auxiliares vêm de profissões variadas e cumprem bem o seu papel, enfermeiras e enfermeiros de todas as idades, muitos médicos jovens. Outra boa notícia é que comunicamos com Walkie Talkies, como nos filmes, aliás, nada nos garante não estarmos a viver um filme. Não, não é filme, são vidas reais de pessoas reais, sem duplos.
Desço para o meu turno e sinto-me como um astronauta a caminho da nave espacial, avanço em câmara lenta e só me falta ouvir os Aerosmith a cantarem “Don`t want to close my eyes”. Visto-me com um fato de corpo inteiro selado com fita adesiva, ajudam-me a vestir - um astronauta.
Coube-me a honra de dar a primeira alta deste Hospital de Campanha e a honra maior de o dizer ao doente que fica emocionado. O doente do lado pergunta quando vai. Eu sorrio com os olhos - é a única parte do nosso sorriso que veem, portanto devemos avançar para as rugas de expressão - e digo que não é possível saber. Ele aponta para a cabeceira da cama onde tem escrito o seu nome e a data de entrada. Já lá vai um tempo. Gosta de fado, pede para ouvir a Rádio Festival que sintonizo. Amália. Que maravilha.
O tempo passa rápido na zona de trabalho, o líquido desinfectante foi fornecido pela Sogrape e é feito do mesmo que a aguardente vínica e foi testado com sucesso no combate ao vírus. Os doentes, num limbo temporal e sem contacto social, alternam gratidão com irritabilidade. Nenhum de nós sabe como reagiria a um confinamento assim. Depois disto nada de queixas de ficar em casa. Lembro uma frase do Kundera: “O medo está no futuro, e quem se liberta do futuro não tem nada a temer.” Não posso concordar menos.
Saio para a zona limpa e sou vistoriado a retirar a parafernália astronauta ou taikonauta - tenho de ter cuidado com o politicamente correcto -, a seguir banho completo e roupa nova. Discutimos os casos e depois temos tempo para nós. Soubemos que o doente chegou a casa e os vizinhos bateram palmas à janela. Aqui, na “Zona Verde” o tempo passa mais devagar. Ainda o Kundera, agora para concordar: “Há um elo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento.”
Também recordo a Clara Ferreira Alves no outro dia a dizer “cada 24h tem cem anos”. É o que estes doentes sentem. Vou comer qualquer coisa e vejo o lago do parque, tranquilo lá fora, os pavões e os patos nunca estiveram tão calmos. Da “Queima” para isto, hão-de pensar: “Estes tripeiros são loucos!”
Volto a subir, olho lá para baixo e lembro uns versos do Jorge de Sousa Braga “Tanta conexão/e tanta solidão”. Tão certos agora.
A Bet está sempre em alerta, eu relaxo e escrevo. Recebemos uma mensagem com um desenho bonito da Inês.
E o incontornável MEC “A grande missão da vida, a grande vitória, é precisamente não nos deixarmos desanimar.” Como desanimar se nos deram Walkie Talkies e finalmente o sonho de criança de astronauta, como desanimar se nos sorriem mesmo só vendo os nossos olhos, como desanimar com o primeiro doente a ir para casa ao som de palmas e de Amália, enquanto os outros não perdem a esperança de amanhã ser a sua vez.
Está tudo errado.
Os heróis são eles que aguentam tudo.