Diário de um recolhimento 31

25/04/2020

Dia da Liberdade. Quanto a mim, a única forma de pensar neste dia é mesmo assim: Dia da Liberdade. Não o considero apenas um dia político como muitos dos políticos. Para mim, acima de tudo, é o dia em que celebramos a liberdade de expressão, o podermos criticar, o respeito por quem tem opiniões contrárias às nossas - o que nem sempre acontece nas redes sociais em que a boa educação é muitas vezes esquecida. Ter liberdade não é ser mal criado, não é expressar ódio, racismo ou xenofobia. Ter liberdade é ter maior responsabilidade e respeitar o outro. 
Existe uma tendência para os de direita não usarem o cravo porque está conotado ao comunismo, os do centro dividem-se e olham com condescendência para quem, pensam eles, não cresceu e não percebe os valores das finanças e da economia, os da esquerda tradicional comemoram porque tiveram um grande papel na clandestinidade, os comunistas comemoram pelo seu combate ao regime fascista, mas fazem-no com o amargo de boca de não terem ficado no poder. 
Eu gosto do cravo porque simboliza a minha liberdade de poder votar em qualquer um dos de cima e poder expressar o que sinto sem o lápis azul da censura e sem me virem buscar a casa.
A Betânia e eu saímos do Rosa Mota às 08:30h com um dia fresquinho cá fora. À nossa espera estão dois pavões machos (Pavo cristatus) com o leque aberto em esplendor para as fêmeas que saltitam em volta deles. Um desequilibra-se, não é fácil aguentar aquela espécie de cocar índio. Em quase todas as espécies animais, o macho é que demonstra mais a beleza e exuberância para assim atrair a fêmea. 
Vejam-se os leões com a juba, os pavões, os veados, os galos, etc.. No ser humano dá-se precisamente o contrário: a mulher é mais bonita. Deixamos os pavões e lembro-me do antigo jogador do F.C. Porto que morreu em campo: Fernando Pascoal Neves (O Pavão). Voltamos para a nossa casa, agora vazia. Os miúdos foram “distribuídos” pela família e ficamos sós. Esta casa passa de um estado convulsivo para um estado adormecido. 
Hoje é um dia especial também pelo aniversário da minha irmã Gisela. Nasceu com fogo de artifício um ano após a revolução dos cravos. Saravá Gisela!
Vou procurar às estantes Sophia (outra vez e sempre), Manuel Alegre, José Carlos Ary dos Santos. Não encontro Manuel Alegre, deve estar de quarentena ou em casa dos meus pais. Encontro um maço de tabaco poético por trás dos livros. Ainda é do tempo da Livramar e tem dentro, em vez de cigarros, poemas de resistência. É uma antologia em forma de tabaco: “Não há machado que corte/A raíz ao pensamento/Não há morte para o vento/Não há morte” do Gedeão é o primeiro cigarro que “fumo”. O segundo é “Grândola Vila Morena” do Zeca Afonso, que o Agostinho faz questão de tocar em casa com as janelas abertas. 
Do Ary “Foi então que Abril abriu/as portas da claridade/e a nossa gente invadiu/a sua própria cidade.” Da Sophia o célebre “Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo.” Lembrei-me agora da Natália Correia - gosto muito dela -, vou buscar... “Minha mãe dizia: `Quando fores grande haverá um país...` E o país era onde estava a minha idade. E a minha liberdade era eu achar-me com toda a força dos ossos no centro da minha liberdade.” Que lindo. Tiro mais um cigarro, parece aquela música “Acendo mais um cigarro/invento mil ideais” e leio Torga “Aos heróis que não o são./Lembra-te do teu grito:/Não passarão!”
O Agostinho mandou-me poemas com colagens de Abril do Mário Cesariny com fotos do Zeca. Cá está o que me faltava: “Queria de ti um país de bondade e de bruma/Queria de ti o mar de uma rosa de espuma”, rosa esta que ele transformou num cravo.
Ao fim da tarde, o Hugo numa mensagem “Deixei-te uma coisa à porta”. Desci e lá estava uma garrafa de Dom Ruinart (o monge que inventou o champanhe) com uma dedicatória para mim e para a Bet e um coração. É bom ter amigos, mas não vou esperar por ti, a garrafa morre hoje!
Dia da Liberdade, que sejas sempre nosso com os teus poemas, os teus cravos e as tuas canções. Que nunca falte aos vindouros, aos nossos filhos e aos filhos deles. Liberdade é responsabilidade. Parabéns à minha irmã que não tem festa este ano, mas nós vamos comemorar aqui em casa. Leio os poemas da liberdade, coloco alto Zeca Afonso enquanto cozinho o peixe no forno, o monge já está no congelador e daqui a pouco a rolha vai saltar para uma saúde à Gisela e à Liberdade. Até amanhã.