Diário de um recolhimento 32

26/04/2020

Hoje de manhã a casa ainda mais vazia, sem os meninos, sem ti. Foste trabalhar e eu aqui fiquei, entregue aos livros e à música. Não me posso queixar, mas quero-me queixar. Sinto falta de ti do outro lado da mesa, sempre a trabalhar. Dos gritos do Afonso com os amigos online, da Rita a tomar conta de todos nós, da Inês a experimentar vestidos e do Miguel a correr descalço como o Huckleberry Finn. Não me posso queixar porque tenho tudo, mas quero queixar-me porque ainda não consigo explicar o voo dos pássaros, a sentida voz do vento.
A Fiama conseguiu explicar o voo dos pássaros. Vou procurá-la... Aqui está: “A própria fala cria/o objecto e separa-o/do silêncio.” Por isso às vezes leio alto. Não me chega a leitura em silêncio, preciso do som para que os objectos, as pessoas, as aventuras e o amor surjam diante de mim. Como estou só, posso fazê-lo sem que me olhem como se fosse louco. Mas loucos somos. Existem parâmetros que compartimentam a loucura, mas estão todos mal. Só é loucura o que não serve, o que já é dizer muito do quotidiano. 
Lembro-me do Drummond, como podia lembrar-me outra vez do Cortazar e dos seus cronópios (o computador dá erro em cronópios! Perdoai-lhe!), mas é Drummond e o Brasil outra vez à minha porta: “A vida não chega a ser breve.” Mas experimentem “passá-la a limpo.” Não dá, é tudo tão instantâneo como sobreviver aos segundos, às palavras que não devíamos ter dito e dissemos, aos actos inconfessáveis cometidos. Somos mortais e não conseguimos voltar atrás. Por isso existe a palavra “Desculpa”. É importante esta palavra, muito mais do que desculpar.
Hoje não passo disto. Ligo a televisão e vejo os mortos: 903. Há quem não acredite ou finja não acreditar. É normal, faz parte da nossa natureza sermos imortais enquanto duramos, como o amor que cantava Vinícius. Nos Estados Unidos querem fingir que nada está a acontecer. O imbecil dispensou jornalistas, depois dispensou a própria conferência de imprensa. O povo que votou nele e nele confia quer beber lixívia. Há quem acredite em tudo: no racismo, na superioridade da força, da raça, no planeta plano como uma pizza, na inexistência do mal. Eu cá também tenho a liberdade de os mandar para aquela parte.
Uma das poucas vantagens de estar sozinho é ter o domínio total da única televisão cá de casa: vejo uma entrevista com o arquitecto Fernando Távora (o pai deles todos). Um dia, a passear na Foz, alguém lhe diz: “Senhor engenheiro...”, e ele “Porque me chama sempre senhor engenheiro se está farto de saber que sou arquitecto?” E o outro: “Porque tenho muita consideração por Vossa Excelência!” Faz lembrar aquele filme português: “são noventa(?) escudos, mas por ser para vossa excelência, são cem.”
Aproveito para acabar o documentário sobre o Miles. “É preciso treinar muito para explodir todas as noites com um pouco de perigo.” Pois, porque a aparente facilidade com que se faz as coisas depende do treino, mesmo no improviso, mesmo quando parece que se nasceu poeta e para isso se vive, como Camões. O Herbie Hancock, como testemunha do que dizia Miles: “Não fiquem no que sabem, entrem no desconhecido.” Só assim se conquista o inominável, só assim se chega onde ninguém chegou.
Um diário é um exercício de narcisismo, bem o sei. É como escrever. Viver é um exercício de narcisismo pois vivemos dentro de nós e não podemos viver pelos outros, embora os outros vivam em nós. Vou buscar os “Cadernos de Lanzarote” do Saramago: “Antes de construir o primeiro barco, o homem sentou-se na praia a olhar o mar.” Parece um início de um romance ou um poema ou algo lindo. “Continuas a escrever poemas de um único verso?” O outro pegou numa mortalha, escreveu um poema em que o primeiro verso era “a estupidez não é o meu forte” e depois fumou-o: Villa-Matas. 
Talvez por estar só estou estranho. Daqui a pouco chegas, jantamos e depois vamos outra vez para junto dos pavões. Para já aqui fico com o silêncio sem filhos, com a impossibilidade de descrever o voo dos pássaros, numa loucura semi-controlada, numa aspiração vã a cronópio, a tentar entrar no desconhecido. Aqui dentro uma voz que diz “a estupidez pode muito bem ser o teu forte.” A minha vontade era explodir todas as noites com um pouco de perigo e pedir desculpa por este diário narcisista. A voz cá dentro “devias levar uma chapada, mas por ser para vossa excelência, toma lá duas!”