Diário de um recolhimento 35

29/04/2020

Saí de casa de manhã, chovia pouco e passaram por mim mãe e filha abrigadas num guarda-chuva a rirem de alguma piada íntima e por momentos esqueci-me disto tudo, por breves momentos nada tinha acontecido e a vida não estava ameaçada por doenças novas, só por doenças antigas, estáveis e conhecidas. Na rádio acabava de tocar Johnny Griffin o “pequeno gigante” e podia jurar que nada tinha acontecido, que ninguém tinha morrido ou ficado com os pulmões secos, por um momento, só por um momento. O noticiário veio a seguir e estragou tudo: o vírus já matou mais nos EU do que a guerra do Vietnam.
Mas a guerra é opção humana, o vírus não. A guerra é a abjecção total, o ser humano no seu pior, a insanidade levada ao limite do impossível. Será necessária em casos extremos? Não digo que não, mas muitas vezes a fronteira entre o bem e o mal é ténue. Os soldados russos e americanos que chegaram a Berlim também cometeram atrocidades, e quem mais sofre são sempre os mesmos: os indefesos. Hemingway disse “Não importa quão necessária ou justificável seja uma guerra, será sempre um crime”. 
Os nazis (letra minúscula) mataram 360000 judeus apenas nos transportes de camioneta, leio no excepcional Martin Gilbert. Com o escape canalizado para o interior da carrinha. Ninguém sobreviveu a esses transportes. 
Mas estes são criminosos conhecidos, depois há aqueles que deixam dúvidas, aqueles que levam à hesitação, os que se aproveitam da boa fé dos outros. Não são melhores, mas são mais difíceis de apanhar. No nosso caso é mais fácil: temos um inimigo comum. 
Mas há também cúmplices do vírus, os que atacam à socapa. Ainda ontem um doente “vou retirar a máscara, doutor.” - máscara cirúrgica - “Não não vai!” Disse-lhe. “Então eu estou a usar esta máscara para o proteger e vai retirar a sua para me infectar?” Expliquei. Não percebeu. Não usar máscara é uma atitude egoísta.
Outro cúmplice do vírus é a desinformação, outro a imbecilidade que se conhece de alguns governantes como o Jair “e daí.” De repente os nossos até parecem grandes estadistas. Mas já estão a ser criticados e não vão escapar desta quando tudo acalmar. 
Quanto a mim, não considero que se tenham portado mal. 973 mortos cá. Vão levantar as medidas de restrição, daqui a pouco todos com a marca do sol da máscara como se fosse um biquini facial pouco sexy. Daqui a pouco tudo livre com máscaras e álcool gel, a primeira para beijos assépticos, o segundo para grandes bebedeiras trumpianas. É preciso cuidado e respeito, mas temos de continuar. A vida não pára, como diz a canção.
Crónica de guerra esta de hoje, vou buscar o Tolstoi, “Guerra e Paz”. Em todos os livros com guerra que li, os soldados só pensam em duas coisas: morte e amor. Claro que há ódio, desejo de vingança, medo, horror. Mas quando descansam falam das mulheres e dos filhos, da família e do amor que têm guardado dentro deles. “E que há por Moscovo? Como está a minha família?” Já os generais e os presidentes têm outras preocupações mais relacionadas com números, meteorologia e geografia. Agem em nome das suas pátrias e dos seus deuses e esquecem-se dos que vão sofrer, dos indefesos. 
A nossa guerra é igual, ataca todos, mas mata mais os indefesos.
As guerras têm também os ratos e as sanguessugas, os que ficam com os restos, os que lucram com a desgraça alheia. Dos grandes fabricantes de armas até ao canalha que rouba as casas dos refugiados. Dos que abusam nos preços das máscaras, aos que se vão aproveitar das retomas dos bancos. 
Não vamos pensar nisso, vamos olhar para os que tentam ajudar os outros, não tanto como profissionais, mas aqueles anónimos dispostos a tudo para minimizar a dor de quem sofre. Sim. Vamos pensar nesses.
Abro a trilogia do Ken Follet sobre o século XX, gostei muito destes livros. A guerra vista pelos principais países envolvidos: “alguns sobreviviam, outros morriam.” E assim nós, século XXI, logo no início, com uma tentativa natural de o mundo se ver livre de nós. E o António nos “Cus de Judas” em que a dada altura “O que seria de nós, não é, se fossemos, de facto, felizes?” 
Acabo com a “Caderneta Militar” do José Carlos Barros “se tu me dissesses por uma única vez/“meu amor”/eu desertava.”