Diário de um recolhimento 36
30/04/2020
A propósito das histórias ou notícias falsas. É curioso como não podemos confiar em nada do que lemos e ouvimos e até o que vemos nas redes sociais ou nos meios de comunicação hoje em dia. É caso para dizer “Tanta tecnologia para nada”. Sabe-se de muitas mortes que não foram bem mortes, principalmente de celebridades: é difícil alguém anunciar a nossa morte, a morte de um anónimo não é anunciável. Foi por isso que o Mark Twain, antes das redes sociais, e a propósito de uma notícia sobre o seu falecimento, disse: “A notícia da minha morte é manifestamente exagerada.”
Mas há histórias em que queremos acreditar, mesmo que sejam um embuste e não confirmem a verdade mas andem lá perto ou sejam aquilo que gostaríamos que fossem. Basta ver no que se baseiam as grandes - e já agora as pequenas - religiões. Esta que ouvi pode ou não ser verdadeira. Se for melhor, se não for devia ter sido e serve de inspiração. Em Itália, na Lombardia, um padre de uma pequena localidade foi infectado com a Covid 19. Como tinha algumas co-morbilidades (outras doenças), foi internado.
Logo de seguida, sabendo das dificuldades dos hospitais e cuidados intensivos que o país atravessava, os habitantes daquele lugar juntaram-se para comprarem um ventilador - no Brasil dizem respirador o que me parece bem - para o adorado padre. Estou a ver aquelas velhinhas italianas vestidas de negro e a dizerem “Metafore!” a irem ao frasco escondido na cozinha, aquele que não era aberto há muito tempo e até dá luta a quem quer abrir e apetece partir espalhando no chão as notas de euro. Não serão muitas as notas, mas vão juntar-se a outras para o ventilador do padre bom.
O respirador chegou, não se sabe bem como, quase um milagre, um gesto bonito é quase um milagre, é como andar sobre as águas. Chegou mesmo a tempo, com o padre a piorar e a entrar em falência respiratória - falta de ar. Quando os clínicos lhe deram a notícia, o padre - imagino - sorriu e juntou os dedos todos da mão à italiano. “Como posso aceitar com estes jovens ao meu lado em agonia?” E recusou. Depois morreu. Demonstrou na sua morte a razão de terem feito tudo para lhe prolongarem a vida. Quero mesmo que seja verdade, com morte e tudo e por causa disso.
Hoje é dia internacional do jazz. Eu que não gostava de jazz, como não gostava de lampreia nem de tripas, como não gostava de Eça ou de Mozart ou de fado e de Fellini. Insisti na lampreia e nas tripas, fui provando todos os anos. Insisti em Eça e Mozart, no fado e em Fellini. Ainda bem. Agora gosto de todos e todos serviram para me enriquecer ou, pelo menos, para ganhar momentos de alegria e de imortalidade. Porque os momentos em que não conseguimos pensar em mais nada, são o paraíso que não pode esperar. Assim foi e é com o jazz.
Tenho escrito aqui muito sobre jazz. Como não me apetece voltar atrás e rever o que já escrevi, refiro o infeliz Chet Baker, o Miles reinventando-se sempre, aquela cave em Praga com whisky a quatro euros, The Bird Charlie Parker que tocou nas costas de Miles, Ella e Louis imortais, John Coltrane, Duke Ellington e os outros todos com as suas histórias trágicas, os seus silêncios que valem mais do que a música inteira, a sua respiração de fundo, o tempo de dedicação a uma paixão que mais de metade do mundo não entende.
Nas limpezas da Covid deparei com as minhas revistas literárias “O Escritor” e “Relâmpago”. Logo na dedicada a Ruy Belo, um verso corrigido “ela enche de dias (a nossa solidão-riscado) as nossas mãos vazias”. Na de Sophia uma fotografia na Grécia com Agustina. Na outra, o Casimiro de Brito para Fiama: “transportá-la num lugar muito reservado/onde a mente e o coração se acasalam”. E por fim a do Nava: “o mar, no seu lugar pôr um relâmpago.” Se juntarmos tudo temos Sophia e Agustina na Grécia com um relâmpago no mar a encherem as nossas mãos vazias de um céu irreparável onde a mente e o coração se acasalam.
989 mortos aqui. Não é uma notícia falsa, mas pode pecar por erro. Espero que existam padres, que digo?, pessoas como aquele padre italiano, pessoas que juntem os dedos para cima e digam: “salvem-se uns aos outros!” É para isso que vivemos, mas também para aprendermos a gostar. De tripas, de Coltrane e de fado. Mas não há nada como as Poetas: Fiama, Agustina e Sophia, parece que as estou a ver, em frente ao mar, a ouvirem Louis Armstrong e Ella Fitzgerald como se o amanhã fosse uma promessa que existisse sempre.