Diário de um recolhimento 33

27/04/2020

Não sei se vou conseguir manter este diário. Acho que não. O meu trabalho está aos poucos a voltar à normalidade. É natural, as doenças não param apesar do vírus. Por um lado fico triste, por outro contente. Normalidade é uma palavra muito estranha à vontade de criar, é o contrário da palavra arte. Para conseguir-mos regressar à normalidade temos de abandonar o mundo dos sonhos e da fantasia, temos de voltar a ser normativos e consequentes. A arte será uma inconsequência? Não, não é. Mas o mundo é uma inconsequência e não tolera o que considera não produtivo. Os poemas fabricam magia e esta não fabrica sapatos.
Ontem regressámos ao Rosa Mota. Fomos informados que todos os testes eram positivos. Neste caso positivo é negativo, é sinal de que o vírus, como uma lapa, ou um chato de primeira que não se cala quando queremos silêncio, ou aquele que não nos larga para podermos falar com a miúda certa, não se foi embora, não descolou, não pegou nas suas coisinhas absurdas e desapareceu. Este vírus é a perfeita definição de um cola monótono e aborrecido - a utilização de sinónimos não é arbitrária. O problema é que mata. Mata mesmo! Não é só uma constipação. É um filho da mãe sub-reptício como uma cobra ou um lacrau.
Hoje fui a Vila Real. A viagem é sempre uma boa desculpa para ouvir música. Mas não se consegue desfrutar de nada quando o habitáculo fede como um animal morto - a Bet diz que cheira a bicho morto, não gosta de utilizar a palavra animal. Lembrei-me do episódio do Seinfeld em que o carro fica com um fedor insuportável, tendo como consequência a tentativa infrutífera de venda. Espero que não seja o caso. Vou rever o episódio quando chegar... Quando cheguei a casa percorri o carro todo como um perdigueiro. Encontrei: os peixes deixaram rasto. Não vou precisar de vender o carro.
Resultado: abri os vidros e aumentei o volume de som. Maria Bethânia em homenagem ao Brasil, ou não isso, nada de tornar público o que é universal. Tudo só mesmo para o meu próprio prazer: “As Canções que Você Fez Para Mim” e os poemas antes das músicas, a suite dos pescadores, “canto o que me apetecer” que bem, “Rosa dos Ventos”, “Drama 3º Ato”, “e o teu olhar era de adeus”, “o meu último bolero...” Não posso esquecer os boleros, gosto tanto, gosto tanto de tanta coisa e nem quero falar nisso porque quero falar nisso, mas a realidade vai sobrepor-se aos boleros. Tudo vai ser mais real do que as palavras. Nunca a música.
Quando chego a casa depois de um dia grande de trabalho gosto de ouvir os meus filhos, gosto dos seus beijos e carinhos e abraços. Hoje não os tenho. Por isso não me apetece ler nem escrever, não quero nada. Se aqui estivessem gritava: “Deixem-me em paz! Quero ler!” E lia. Assim não leio nem escrevo nem grito. O melhor é escolher livros que não me exijam quase nada, que me levem no sonho de vidas que foram, nem sempre fidedignos no que demonstram, mas um retrato do que queremos deles. Vou buscar as fotobiografias (FB) que comprei há anos, tenho quatro ou mais.
Abro à sorte a do Zé Cardoso Pires e vejo-o com Mário Vargas Llosa e Gabo no ano em que nasci. Mais à frente uma página/versão de “Dinossauro excelentíssimo” com “um imperador que na ânsia de purificar as palavras acabou por ficar entrevado”. Agora! No 27 de abril! Continuo a folhear e vou buscar outra FB, o do seu companheiro, António Lobo Antunes que suturou um PIDE sem anestesia, ou fingindo que uma injecção de água destilada seria anestesia - dói mais do que os próprios pontos.
Devo pedir desculpa a Vergílio Ferreira, de quem gosto, por ter ficado aborrecido com as suas impressões de Sophia, que amo, e abro a sua FB: aparece a casa de Fontanelas onde já fui em peregrinação. Era num homem que sorria pouco, mas apanhei-o agora com o Herberto em 92, quase um sorriso, um esgar, junto a um dos três poetas que admirava (mais Ramos Rosa e Eugénio). Acho que, como eu, sorria para dentro, quase sempre para não desmoronar colunas sólidas, para não verem o quão tímidos podemos ser na presença do outro.
Das FB que tenho, fica também a de Torga, que admiro pela coerência, pelo amor à arte, pela humildade e “perfil de contrabandista espanhol”. Ainda mais pelo Diário, que sempre idolatrei. Aqui uma carta corajosa contra o regime (ainda ontem Abril) e outra da PIDE DGS (outra DGS, não a actual, bem entendido) de 1970  com a informação de recusa do Prémio Nacional de Literatura por parte do autor. Acaba com “A bem da Nação”. É tão triste que mete pena. Suponho que tenha sido um alívio esta recusa para aqueles senhores.
Hoje um diário sem imaginação nem originalidade. Temo que assim continue pelas horas ocupadas com o trabalho. A normalidade ataca a anormalidade, mas a inconsequência se sermos tem de ser defendida sempre. A inconsequência dos boleros que nos fazem sonhar e por vezes até dançar. As crianças que nos eternizam e infernizam, mas sem as quais nada somos, os livros que nos amenizam a alma e que humanizam os deuses. Apetece dizer: “Bom teste negativo.”
O que parece mau mas não é.