Diário de um recolhimento 34

28/04/2020

O problema de sermos românticos é a quantidade de desilusão que estamos dispostos a tolerar. Isto na remota hipótese de nos considerarmos românticos. Hoje em dia o romantismo caiu em desuso por uma miriade (não gosto da palavra miriade) de situações que têm que ver com o desenvolvimento(?) dos padrões sociais. Senão vejamos (outra expressão cretina esta), o objectivo domina o mundo, o subjectivo é encarado como um desvio da razão. O não querer tudo a qualquer custo é visto como uma atitude bizarra. 
A poesia está para a actualidade como a cocaína ou a heroína, qualquer dia o tabaco: tem de ser transaccionada com cautela e em locais próprios. Se nos apanham com um verso na mão estamos quilhados (outra bela palavra), com a desvantagem de não dar lucro nenhum. Quando digo nenhum é zero mesmo. Eu bem sei que as pessoas que têm ideais muito vincados podem ser verdadeiramente perigosas - Estaline, Hitler -, mas outras há - Gandhi, Luther King -, que sendo perigosas, o são porque colocam em causa o status quo. Cá está o latim a dar alguma dignidade a isto.
Ser romântico hoje, é uma espécie de grito contra a pressa de chegar. Eu cá não tenho pressa de chegar, já sei onde isto vai dar... Mas as atitudes também são olhadas de canto. Se puxamos uma cadeira para a senhora se sentar “Este quer coisa”, se abrimos uma porta para deixar passar alguém “Olha-me este, tem a mania que é importante”, se paramos na passadeira há sempre um velhote a mandar-nos avançar “Está armado em bom samaritano (detesto também esta)”, mas ai de nós se não tivéssemos parado!
Pode ser que esta doença nos traga mais serenidade. Duvido, mas não quero rejeitar a possibilidade, mesmo sendo pequena. Por cá já matou 948 pessoas (é bom não esquecer que não são números os mortos, são pessoas, os mortos são pessoas). Mais de 12000 pedidos ao Banco Alimentar (cabeleireiros, fisioterapeutas, manicures, taxistas, todas as profissões possíveis, trabalhadores precários). A circulação de moedas e notas diminuiu drasticamente o que não seria mau se não fosse por isto.
Lembro-me de um romântico que li muito e já não leio há uns anos: Balzac. Tenho ali “Esplendores e Misérias das Cortesãs”. Dizia o escritor que “o amor não é só um sentimento, é uma arte”. É isso, e é preciso uma aprendizagem para viver este jogo, esta arte, é uma espécie de combate contra o vazio. Abro à sorte as “Cortesãs” e leio: “Zanga-te apenas o necessário”. Não é? Zangamo-nos demais, somos irascíveis, por motivos tão pequenos que depois pensamos “Que estúpido fui!” Bem, pelo menos alguns de nós.
Outro romântico, Goethe com “A Paixão do Jovem Werther” que vou buscar... “Isto do género humano é uma coisa bem monótona”. É para isto que serve um escritor, para nos dizer na cara o que já sentíamos sem o saber. Pode parecer que não, mas noventa por cento de nós (não do nosso corpo, da humanidade, do corpo seria água) é de uma monotonia apática e atroz que nos faz viver como autómatos (outra palavra odiosa). Mais à frente, salto uma páginas e isto “penso muitas vezes como deixamos escapar aquilo que nos é mais querido na vida.” Pensar pensamos, mas logo a seguir voltamos ao rame rame (...). 
Sobre as vantagens de ser romântico. Ah as vantagens não as conto, de quiserem saber têm de fazer um esforço. E não precisam de ler Goethe, basta puxar uma cadeira a alguém, ouvir uma música que arrepie, olhar para uma árvore e ver a maravilha que ela é, imaginar uma mulher a passear um galgo, parecer estúpido aos olhos de um tecnocrata e já está. O Eça ainda pode ser um bocadinho, mas já a virar para o realismo, já com aquela ironia fantástica. Sim porque em termos de estilo literário eu gosto de todos desde que me assombrem.
Mas o Fradique, o seu alter-ego, é-o certamente. Vou buscar: ostras em Paris após a Ópera. Lá está, nem é preciso ler mais, meu caro Fradique. Devo dizer que o romântico não se considera superior aos outros, apenas não sabe viver de outra forma. O ideal é preparar-se para as desilusões focando-se nas vantagens. Existem por aí miriades de samaritanos, autómatos do rame rame que estão quilhados uns com os outros. Senão vejamos, Gandhi dizia e bem: “Olho por olho, e o mundo acabará cego”. Agora desculpem, mas vou ali abaixo da ponte comprar meio quilo de versos.