Diário de um recolhimento 37

01/05/2020

Para comemorar o dia do trabalhador fui trabalhar de manhã e a Bet à tarde. Muita chuva pelo caminho. Se a chuva lavasse o que temos na cabeça e nos pesa e entorta o pescoço para um dos lados como um papagaio ou um apreciador de arte. Mas não, a chuva lava o que de físico existe, não lava as preocupações metafísicas ou a vontade de chorar. Quando chove olhar para cima, abrir os olhos e a boca - se estivermos sem máscara - e sentir o que os céus nos oferecem. Afinal sempre lava, afinal a cabeça mais leve e o pescoço de novo como um fuso, olhar em frente, um sorriso.
Os meninos de novo em casa, almoçamos todos juntos antes da Bet sair. O silêncio fugiu, desapareceu para um canto da casa, um sítio onde ninguém está, só o pó a levitar nesse silêncio como se este fosse vácuo. Os gritos não me impedem de ler e escrever, o silêncio impede mais. Lembro agora a música que o Agostinho me apresentou de John Cage para piano: “quatro minutos e trinta e três segundos” é o título, mas de silêncio - a pauta que podemos todos ler. Não será de silêncio pois é para ser - ou não ser - tocada ao vivo, onde o silêncio é impossível, como em todo o lado.
Daqui a pouco este diário como um “Ensaio sobre o silêncio”, mas a tanto não me ensaio. Lembro um poema das “Mãos e os Frutos” do Eugénio “mas quando cessa o teu canto/o silêncio é todo meu”. Só damos valor às coisas através dos seus contrários. Daí o yin e yang, a vida e a morte, o som e o silêncio, o bem e o mal, a saúde e a doença. Umas sem as outras perderiam significado, não fariam sentido. O bem existe sem o mal? E o que está ali a meio e não se sabe bem? É possível no mesmo acto sermos  bons e maus? Pode acontecer...Os contrários em simultâneo: eis nós, seres humanos.
Passámos os mil mortos, temos agora 1007. Trampa (escrevi Trump e o corrector mudou, juro) tenta desviar as atenções com ovnis - pouco original - e a possível guerra - menos ainda. Besta Quadrada (aqui não foi o corrector, fui eu mesmo) finge não ver as covas a serem preparadas para os mortos. No Brasil morre muita gente e muito nova com o vírus. Finalmente vejo o Guterres chateado, já não era sem tempo, pode não adiantar, mas não ficar calado perante a injustiça é essencial. Aqui o silêncio não conta, quem cala consente ou não sente, quem cala é cúmplice dos criminosos. Calar é como empunhar uma arma e matar.
Afinal tinha Manuel Alegre cá em casa, “A Praça da Canção” numa edição comemorativa - hoje estou com os livros grandes. E a propósito de não calar: “Mesmo na noite mais triste/em tempo de servidão/há sempre alguém que resiste/há sempre alguém que diz não”. Não votei nele para presidente mas voto nele como poeta. Tenho outro livro grande de um poeta grande. Do David: “Assim que te despes/as próprias cortinas/ficam boquiabertas/sobre a luz do dia.” E ainda outro, Ruy Belo com actualidade: “este céu passará e então/teu riso descerá dos montes pelos rios/até desaguar no nosso coração.”
“Passará, não passará,/algum deles ficará,/se não for a mãe à frente,/ é o filho lá de trás.” Até as músicas infantis são premonitórias e esta não é das piores. Lembro-me bem de brincar a isto: todos em fila indiana até um se tramar, como na vida. Só que aqui, onde estamos, não há filas indianas, andamos todos ao molhe (e fé em Deus), agora menos mas não deixamos de ser um molhe. E daí a lotaria, mais de azar do que de sorte, porque a sorte é cá estarmos e não darmos por ela, só damos por ela quando chega o azar. Lá está, os contrários. E nós só reparamos quando é mau. O bom é normal. Pois fiquem sabendo: NÃO É. 
As pombinhas da Catrina (prevê o furacão), está feliz o petiz (soa a mocidade portuguesa), 7, 8, 9 e ainda nada se resolve (não é?), ele não é frade, nem homem casado (nada de Eça aqui), e depois dá pancada na mulher (há muitos sebastiões e deviam ter desaparecido todos em Alcácer Quibir), quem te pôs a mão sabendo que és minha (deve ter sido o sebastião), nunca mais ninguém a viu (pudera!), encontrei o meu amor/ai Jesus que lá vou eu/Ora Zeus (não é Zeus é zus), truz, truz/ora zás, trás, trás/ora chega, chega, chega/ora arreda lá para trás (sem comentários). I rest my case. 
Plano para o meu dia ao contrário: está a chover, por isso cabeça fora da janela a olhar para cima sem máscara, lavar a alma e sorrir, depois 4 minutos e 33 segundos a ouvir o John Cage que é o tempo certo para a pele secar, tentar arranjar forma de dizer mal de quem faz mal aos outros, pode até ser com uma canção infantil, não esquecer nunca que muitos de nós temos uma sorte do caraças porque podemos pensar nisso, fazer o jantar a ouvir música e juntar a família toda outra vez. Ao fim do dia ainda um verso do Ruy: “Que por todos se faça a poesia.” Antes de adormecer ao teu lado.