Diário de um recolhimento 39
03/05/2020
Domingo, dia da mãe. Hoje deixo aqui um texto que escrevi das minhas memórias antigas, quando percorria a cidade de Espinho pela mão da minha mãe. Mas antes, recupero a radicalidade: já sei que é difícil entender-me, já sei que não encaixo em nenhuma ideologia totalitarista. Por isso, muitos não entendem como posso ser bom se não acredito no inferno, ou como posso ser bom se não acredito em Marx. Pois nem deus nem o diabo nem os gurus. Retiro de todos o que me faz sentir bem no dia seguinte, o que não me dá peso na consciência, o que acho que não envergonharia os meus mortos, os que aqui dentro estão.
Aos meus filhos um testamento de amor pelo belo e de respeito pelo próximo, não amor pelo outro, pois isso é impossível. Amor pelos que nos querem amor, mas nunca olho por olho - aí nada de Bíblia- e respeito pelas opiniões alheias. A não ser que essas opiniões não honrem a dignidade de cada um, a liberdade de cada um. A minha ideologia é perigosa, vai contra os que se julgam donos da verdade. Não sou mais nem menos do que os outros, mas tenho convicções a defender, sou um indivíduo, portanto um ser só, no meio de uma comunidade que tenho de respeitar, no meio de uma família que amo.
Só me lembro de um poema que tenha gostado sobre a mãe, Herberto Helder: “No sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva. Nas amadas caras loucas batem e batem os dedos amarelos das candeias. Que balouçam. Que são puras. Gotas e candeias puras... Seu corpo move-se pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões e orgãos mergulhados, e as calmas mães intrínsecas sentam-se nas cabeças filiais. Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado vendo tudo...enquanto o amor é cada vez mais forte.. e as mães são cada vez mais belas. Pensam os filhos que elas levitam...”
Salão Manuel Cabeleireiro
“Era no tempo em que as pessoas se arranjavam. A minha mãe passava primeiro pela loja de tecidos Fonseca e escolhia o padrão para as toilettes inspiradas na Hola (malditos espanhóis com acentos ao contrário).
O senhor Fonseca, ia jurar que de manguitos na camisa como um croupier, pegava nos rolos de tecido enrolados num pau e deixava que fizessem um som mate de corpo abandonado em queda sobre o balcão , como o que faz um livro grande quando o fechamos. Gostava daquele som. Ainda gosto.
Depois usava gestos de artes nipónicas enquanto media o pano com o metro de madeira e riscava o tecido com o giz branco e grosso. O senhor Fonseca, ia jurar que uma fita métrica amarela ao pescoço, era todo sorrisos para a minha mãe que andava sempre bem vestida-ainda hoje anda mas já não estamos no tempo em que todas as pessoas se arranjavam.
Descíamos a rua 19 e virávamos à direita , depois entrávamos por uma porta alta que dava para uma escadaria íngreme com um tapete , vermelho?, preso por pauzinhos laterais . Lá em cima o balcão de pagamentos vazio à esquerda,
o mar em frente a dizer paisagem e à direita o esplendor do salão como se de baile. O senhor Manuel não tinha um fio de cabelo mal alinhado. Ninguém quer um dentista com dentes podres ou uma nutricionista gorda. As meninas esvoaçavam em volta dos cabeções das madames. Sempre as conheci por meninas e nunca lhes soube o nome, embora alimentasse paixões por algumas - ainda era muito novo para a tensão sexual, eram mesmo paixões sem mais. A minha mãe, adivinhando o meu sobressalto, metia uma nota à socapa na algibeira das batas das meninas.
Cheirava a laca e -ia jurar- rosmaninho , a minha mãe despedia-se e eu , com a cabeça mais leve, olhava ao longe para as ondas do mar e reparava nas três ou quatro escafandristas com o capacete na cabeça e a ihola no colo à espera de vez para mergulharem nas profundezas.
O senhor Manuel despedia-se de nós e eu, triste, olhava pela última vez para as meninas, muito melhores que as de Velasquez, que me faziam sonhar com inquietações precoces, sobressaltos sem explicação, mergulhos no mar.”
Adoro mergulhos no mar, beijos, abraços e coisas boas.