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A mostrar mensagens de março, 2020

Diário de um recolhimento 6

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31/03/2020 Hoje é o meu dia de trabalho nos hospitais. O sol continua escondido e agora chora. Bem de certo - como diz a Bet - não lhe atenderam as queixas de ontem. Consultas presenciais, videoconsultas e teleconsultas. Tentar dar a volta a isto. Um homem que sobreviveu ao seu tractor em cima, outro que quase morreu com uma bicicleta, alea jacta est. Ainda é cedo e vai piorar, mas pode ser que não fique tão mau como em Espanha.  Triste fado, ouço a Amália no carro “Estranha Forma de Vida”. Nem mais, como o livro do Vila Matas, aliás inspirado no fado escrito pela própria Diva. Deixo aqui espaço para o livro ao fim da tarde: “À minha maneira quis comportar-me como se fosse o Deus antigo dos cristãos. À minha maneira quis estar em todos os lugares e espiar tudo, espiar toda a gente. Estranha forma de vida. Tornei-me espião de mim próprio.” Como todos nós, imagino por esta altura. Continuo no fado em viagem para o hospital, Camané, Gisela João, Ana Moura e a revelação (para ...

Diário de um recolhimento 5

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30/03/2020 Diário de um recolhimento. O sol deve ter ouvido os meus lamentos e hoje fez gazeta, ou então greve. Quem sabe o que ditará o sindicato das estrelas com planetas habitáveis - para já. O sol com um cartaz gigante: “Abaixo com o trabalho contínuo! Até Deus descansou! Vamos todos arrefecer!” Segunda-feira, começa a semana e não começa nada.  Mas há sempre alguma coisa para fazer quando se está em casa: cozinhar, arrumar, ler muito, brincar com as crianças, ver documentários (hoje talvez Miles se me deixarem) e filmes. O telejornal tão temido mas tão necessário.  Acabo com o tema muito debatido da minha barba. A minha mãe “faz-te mais velho”; a Bet “não sei que te diga”; os meus filhos “pica”; eu, ao espelho: em vez de intelectual,  pareço um indigente, uma espécie de Bukowski mas sem talento, um Herberto que se tivesse dedicado à lida da casa em vez de ser o génio que foi, um Hemingway que nunca tivesse saído de casa. Resultado: faço a barba. E vo...

Diário de um recolhimento 4

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29/03/2020 Diário de um recolhimento Acordo com uma música na cabeça, como acontece frequentemente. Chega a ser irritante ter de passar o resto do dia com o mesmo tema cá dentro, mas desta vez não. Desta vez é “My Funny Valentine” pelo maravilhoso e desgraçado Chet Baker. Adoro andar por casa enquanto todos dormem, gosto do silêncio e tenho alguma privacidade. Corro a ouvir a música cantada pelo verdadeiro Chet e não pela cópia na minha cabeça que considero boa, mas não o bastante. Ontem recebi três mensagens de grandes amigos: “Saravá” do Hugo e do Manel Zé, “Saravá” respondi e uma do Agostinho com uns versos de um poeta que gostamos todos muito, o David Mourão-Ferreira e que se adequam ao texto de ontem: “A nossa noite ontem à tarde Foi a manhã por que Esperávamos” Claro que vou logo abrir David, mas não escolho “O Jogo de Espelhos” do qual gosto por inteiro, antes a obra completa e calho no “Baptismo” “Para atrasar a morte vamos abrir a noite Com música de...

Diário de um recolhimento 3

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28/03/2020 Diário de um recolhimento Hoje nem deu para ver como estava o sol, saí de casa antes de todos acordarem para ir comprar comida. O predador sai para caçar. Ou assim parece porque os poucos que encontro fogem de mim. Afinal está mesmo sol com nuvens napolitanas como lençóis, finas como o gaze dos hospitais. Nuvens que não tapam nada, como os justos, se os houver. Há sim, conheço três ou quatro. Pela estrada fora (nada de Kerouac aqui, ainda não cheguei lá), vazia de carros, apetece mesmo acelerar e é o que faço ainda no espírito de “Ford v Ferrari” que vi ontem. Só me faltava uma multa agora, vinha mesmo a calhar. As peixeiras resmungonas e simpáticas como sempre espetam-me camarões e amêijoas vivos na cara. Pergunto se são frescos e uma dá-me um tabefe no cachaço (lá se vai o distanciamento físico).  Trago também lulas e linguados, depois pão, frutas e legumes. Neste barco ninguém vai morrer de escorbuto. Quando todos acordam os camarões estão prontos. V...

Diário de um recolhimento 2

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27/03/2020 Diário de um recolhimento. Lá fora o sol, soprado pelo vento, avança até ao fim do dia. No fundo é disto que se trata: ver o vento a empurrar o sol até não podermos mais ver o vento a empurrar o sol, porque está nublado ou porque ficamos nós nublados ou até com o próprio recolhimento a expandir os seus limites até muito dentro de nós. Não fiz a barba outra vez, pica nas bochechas dos meninos, os pêlos como uma espécie de ponteiro do tempo a que não se tem de dar corda. Não devíamos envelhecer neste período, como é que envelhecemos se o tempo está parado? Sabemos do tempo pelos cabelos, pelas unhas que não param de crescer. Que cresçam nos mortos é mentira, é a pele e a carne que encolhem por desidratação. A Itália ultrapassou as 8000 mortes (oito mil). Hoje homenageamos a Itália cá em casa: pizza ao almoço e esparguete ao jantar. Adoro Itália. Visitei-a com os meninos que estão contentes pelas refeições do dia e tristes por Itália. 60000 pessoas por dia coroniza...

Diário de um recolhimento 1

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26/03/2020 Diário de um recolhimento. Abro “A Criação do Mundo” do Torga: “Embora individualistas, não concebíamos uma sociedade de solidões.” Lá fora está um sol sem pessoas, um sol impessoal, um sol sozinho.  Aqui eu e os miúdos. Dou-lhes de comer. A minha única utilidade é essa. A Bet batalha contra vários inimigos invisíveis: os vírus. Não é um, são milhares de milhões. Passa o dia no hospital e vem para as refeições connosco. Não é uma questão de coragem, é normal.  Quero dizer, nela parece normal. Bebo uma Corona. Juro que sim. Quem mais jura mais mente e dizem que as acções da cerveja caíram devido aos americanos. Há um sem número de piadas nas redes sobre isto. A coincidência dos nomes, também Hamlet tinha coroa, e o príncipe Charles que já é velho para ser rei mas teve direito à sua corona. Deu ontem no telejornal. “São as perguntas que nos fazem mexer” diz uma personagem do Afonso Cruz, mas não só. A sarna também o faz. O medo faz as duas coisas: m...

Do Dia Mundial da Poesia

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No Dia Mundial da Poesia, 21 de Março: Um pequena montagem para a revista Novos Livros , e um poema de um livro antigo. https://www.novoslivros.pt/21-marco-dia-mundial-da-poesia/